quinta-feira, 7 de junho de 2012

A TORRE DAS DUAS LUAS


Quando Ismália enlouqueceu, meu pai a afastou do convívio da família. Por vergonha talvez, ele mandou que a escondessem em um quarto escuro e bolorento, no alto da torre do nosso castelo. Eu, secretamente, chamava aquele lugar em que minha irmã Ismália passou seus últimos dias de “A Torre”. Na Torre, Ismália ficava manhãs e tardes inteiramente em silêncio. As coisas mudavam assim que caía a noite.

Ismália apaixonou-se pela lua, sua avassaladora paixão. Assim que a lua se acomodava no céu estrelado daquelas noites quentes, Ismália começava a delirar. Via uma lua no céu. Enxergava outra lua no mar, lá embaixo, onde as ondas vinham bater nas pedras.

Certa vez, em meio aos gritos angustiosos da minha irmã mais jovem, subi até a Torre para consolá-la no seu desvario. Ela esticava os braços para o céu e melancolicamente olhava para o mar. Fiquei por horas a fio, até o sol nascer, com Ismália em meus braços, tentando acalmá-la em seu tormento sem fim. Somente quando o primeiro raio de sol iluminou a Torre Ismália adormeceu, sonhando com as duas luas. Qual pecado teria ela cometido para amar algo inalcançável, perguntei-me incansáveis vezes?

A época das tempestades chegou. E por vários dias não houve nem sol nem lua. Isolada no alto da Torre, Ismália lamuriava-se por achar que a lua a teria abandonado. Por vezes tentei lhe explicar a verdade. A lua não havia partido. Estava escondida atrás das nuvens de chuva, e os pingos de água que entravam no quarto nada mais eram que as lágrimas da lua por amor e saudade de Ismália. Porém meu pai – sempre ele – não permitiu que eu subisse mais, temeroso de alguma reação mais forte por parte da minha pobre irmã. E então foram noites e dias de gritos e desatinos, em que nós todos lá em casa simplesmente fomos obrigados a ignorar.

Mas as estrelas voltaram e com elas a lua cheia. Tão enorme e imponente que até eu mesma me apaixonei. Ao primeiro luar que se seguiu pude ouvir a voz de Ismália. Ela cantava! E estava tão feliz que invejei sua felicidade. Quem mais poderia ser tão feliz quanto Ismália naquela noite de lua cheia? Eu também queria um pouco da sua felicidade, por isso naquela madrugada subi até ao seu quarto. Abri a porta da Torre bem devagar. Avistei Ismália em pé no parapeito da janela.

Ela pressentiu quem alguém entrava na Torre e parou imediatamente de cantar. Voltou-se para mim, envolta em um enorme sorriso iluminado. A camisola branca flutuava a sua volta como se Ismália fosse um anjo desgarrado. Só lhe faltavam as asas. Fiquei mais surpresa que apavorada ao vê-la em pé, na janela, pronta para o salto. Perguntei o que ela estava fazendo e minha irmã respondeu que Deus havia lhe dado asas. Não era possível que eu não estivesse enxergando, xingou-me Ismália.

O som do ruflar de asas tomou conta da Torre. Eu sabia o que Ismália pretendia fazer,  por isto não movi os pés de onde eu estava. O corpo dela pendeu para o espaço vazio, bateu nas pedras, caiu no mar. Corri até a janela da Torre. A lua cheia iluminava a noite. Juro que vi a alma de Ismália subindo aos céus. O corpo de Ismália perdeu-se no mar.


Baseado no poema Ismália de Alphonsus de Guimaraens, 
Quando Ismália enlouqueceu/Pôs-se na torre a sonhar.../Viu uma lua no céu, /Viu outra lua no mar/No sonho em que se perdeu/Banhou-se toda em luar.../Queria subir ao céu/Queria descer ao mar.../E, no desvario seu/Na torre pôs-se a cantar.../Estava perto do céu/Estava longe do mar.../E como um anjo pendeu/As asas para voar.../Queria a lua do céu/Queria a lua do mar.../As asas que Deus lhe deu/Ruflaram de par em par.../Sua alma subiu ao céu/Seu corpo desceu ao mar...

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