sábado, 17 de outubro de 2015

VALENTINA, A GATA

Daqui enxergo o mundo. Já vi coisas que deixaram meus pelos amarelos eriçados. Hoje, no entanto, não me surpreendo com mais nada. Pelo contrário, acho tudo tão engraçado. Esses humanos, no fundo, me divertem.

Gosto de ficar aqui no telhado, quando o sol ainda não está quente. Fico sentadinha, vendo o mundo passar, longe da minha dona chata. Por que as pessoas não entendem que os gatos são diferentes dos cachorros? Eu gosto de passear sozinha, não preciso de ninguém para ficar caminhando junto comigo. Minha dona, aquela boba, deve ter me confundido com um cachorro assim que me tirou da companhia da minha mãe e dos meus irmãos. Onde já se viu gato com coleira? Miei tanto, fiz um escarcéu sem tamanho, e ela se viu obrigada a arrancar aquele troço antes que eu me enforcasse. Mesmo assim, ela insiste em colocar aquele maldito lacinho cor de rosa na minha cabeça. Claro, ele não sobrevive a um dia inteiro das minhas andanças. Às vezes tenho vontade de dizer para ela: Me esqueça! Mas sabe, ela faz umas comidinhas gostosas para mim. Será que existe alguém que saiba fazer um pedaço de carne tão gostoso igual ao que ela me faz? Minha dona é chata, mas cozinha bem. Eu não gosto de rações para gatos. 

 Humm... mas eu sou fascinada é pelo namorado dela. No começo ele não me dava bola. Mas eu me insinuei tanto, me esfreguei tanto nas suas pernas peludas que acabei por conquistá-lo. Aliás, eu sou uma conquistadora nata. Ai, ele é um gato de duas pernas! O lindo me adora. Daqui do telhado, vejo quando ele chega. Eu saio correndo, entro pela janela, pela área, por qualquer lugar e já me posiciono na porta. Ouço-o subindo as escadas, sinto o cheiro do seu perfume. Minha dona fica meio enciumada, mas a gata aqui sou eu.  Depois que eles se beijam, o namorado dela me pega no colo, me acaricia, até já me beijou no focinho! São nestas ocasiões que eu gostaria de ter duas pernas. Certamente minha dona já o teria perdido para mim. 

Ruim mesmo é quando chove. Argh, eu tenho horror a água. Aí não tem jeito. É ficar em casa, enroladinha, esperando a chuva passar. É um saco! Minha dona fica toda hora me colocando no colo dela, mas eu não fico ali nem um segundo. Que coisa, me deixa em paz. Tenho vontade de dizer a ela que vá comprar um cachorro. Ou vá fazer um filho.

Ontem o gato da vizinha veio aqui em casa me namorar. É um gatão branco, peludo, de pedigree. Claro que ele entrou escondido, o sem vergonha. Que felino bonito... acho que estou ficando apaixonada, logo eu, imagine só. Mas não tem como resistir àqueles olhos amarelo-esverdeados, o ronronar sedutor. Ele sabe como tratar uma gatinha. E eu que me achava tão esperta, fui cair nas suas armadilhas. Se minha dona sabe, corre com o peludo daqui. 

Daqui do telhado enxergo o mundo, o meu mundo. Ele é tão grande e às vezes pequeno demais. Mas chegará o dia em que vou criar coragem de transpor os muros e conhecer outras paisagens. E depois, será que vou querer voltar?



quinta-feira, 15 de outubro de 2015

CLAUDIOMIRO, O CARA

Claudiomiro, ou melhor, Cacau, tinha 18 anos quando estourou no universo futebolístico. A sequência de gols que empilhou no juvenil do time sem expressão que atuava logo chamou a atenção dos dirigentes. Em pouco tempo já jogava na equipe principal. E, no ano seguinte, seus passes, dribles e jogadas geniais levaram Cacau a ser contratado por um dos maiores times do Rio de Janeiro.

A fama chegou rápida e trouxe de arrasto mulheres de todas as faixas etárias. Cacau encheu o corpo de tatuagens imitando seus outros colegas de profissão e inventou um penteado maluco copiado por 10 entre 10 garotos. Ele era o tal.

Sua presença desencadeava gritos histéricos de hordas de adolescentes em surto sexual. Capas de revistas, casinhos amorosos sem compromisso, treinos e jogos. Esta era a vida do Claudiomiro. Suelen se apaixonou perdidamente por ele. Suelen, vinda da periferia, bonitinha, loira de farmácia, ensandecida de amor pelo astro em ascensão.

Suelen trocou de time de coração para torcer por seu ídolo. Sentada e uniformizada frente à TV durante as partidas, ela assistia a tudo, menos futebol. Impedimento? Como assim? Os olhos não desgrudavam da camisa suada dele, das penas compridas e musculosas, do abdômen tanquinho. Era um homem e tanto, e com apenas 19 anos! A parede do quarto da Suelen não tinha mais espaço para tanto pôster do Cacau. Na semana anterior havia rolado no chão com uma garota da escola depois que a outra afirmou em alto e bom som que Suelen era muito chinelona para namorá-lo. Depois do barraco, Suelen voltou para casa orgulhosa de ter quebrado dois dentes da rival. Pena que o Cacau morava longe da sua cidade, distante muitos quilômetros de onde Suelen vivia. Ela tinha uma certeza, porém. No dia que Cacau pusesse os olhos nela, se apaixonaria no mesmo instante, perdidamente. E a partir daí ambos viveria um conto de fadas.

Quando o time do Cacau veio jogar na cidade da Suelen, ela simplesmente enlouqueceu. Foi no primeiro tatuador que encontrou e pediu que ele tatuasse “Forever Cacau” no antebraço, grande, em letras pretas. Depois convocou algumas amigas também fãs do moço e foram todas para a frente do hotel onde o time estava concentrado, com cartazes, faixas e muita gritaria. Tanto esforço valeu uma entrevista em rede nacional, onde Suelen apareceu se debulhando em lágrimas, mostrando a tatuagem feita em homenagem ao ídolo e declarando que o amava mais que a si mesma. Ao contrário do que pensava, aquilo não foi o bastante para que alguém a pusesse frente a frente com Cacau. A única coisa que restou foi Suelen ir ao jogo e ficar se esgoelando na geral, durante os 90 minutos, pelo nome do astro. O time dele perdeu, mas naquele dia Suelen voltou para casa com trocentas fotos no celular, muito emocionada. Havia visto seu futuro marido de perto. E então, a partir desse momento, começou a planejar uma viagem para se encontrar com ele. Ninguém poderia saber. Era segredo. O plano era sair de casa durante a madrugada e pegar um ônibus para o Rio de Janeiro. Daria um jeito de conhecê-lo e deixá-lo perdido de amor. Suelen confiava no seu taco.

Um anúncio mal feito colado em um poste dizia que Madame Anunciação traz seu amor de volta em três dias. Suelen pegou o pouco que sobrou da sua bolsa de estágio e marcou uma hora com a cartomante. Só queria que ela confirmasse o que já sabia: que Cacau muito em breve seria todinho seu.

Madame Anunciação lhe atendeu em um ambiente perfumado, com um lenço na cabeça e uma bela bola de cristal na frente. Suelen, constrangida e nervosa, logo contou o motivo da sua visita. Falou até demais. Revelou que acompanhava a vida de Cacau desde o início da carreira dele, que o quarto era tomado por fotos e posters gigantes e que tinha certeza que um dia iriam casar. Só queria uma confirmação antes de pegar o ônibus fugida para o Rio. Mostrou a tatuagem e a intenção que tinha de fazer outra por dentro do lábio.

Olhando atentamente para a bola de cristal feita de vidro, Madame Anunciação segurou o riso com esforço. Mais uma trouxa. Precisava manter o foco e não se trair. Não fazia meia hora havia visto em vários sites de notícias, fotos de Cacau com sua nova namorada, uma dançarina peituda e bunduda, loira e bonitona, ambos abraçados, jurando amor eterno. E ali estava aquela moça, sentada a sua frente, sonhando em casar com outro deslumbrado pela fama, possivelmente um ignorante que tivera a sorte de se dar bem no futebol. Que Deus lhe desse juízo suficiente para conseguir aprender algo com a fama,  tão efêmera e tão cruel. E que fizesse grana de uma vez.

A vidente – que nunca foi vidente – fechou os olhos procurando as melhores palavras. Quando encarou novamente a mocinha, disparou de uma vez só:

— Você nunca ficará com ele. Não está escrito em lugar nenhum do universo que vocês se encontrarão um dia.

Suelen tomou um susto. Empalideceu, balbuciou, tentou argumentar alguma coisa. Com lágrimas nos olhos, Suelen pagou o que devia e saiu atordoada dali. Não era possível, dizia ela para si mesma, pensando na grana guardada dentro da caixinha para a viagem que pretendia empreender tão breve. Cacau não será meu, ele não será meu...

Cega pelas lágrimas, Suelen atravessou a avenida sem olhar para os lados. Não deu tempo de o ônibus frear.


sábado, 3 de outubro de 2015

FIM DE PAPO

Ele conduzia o carro pela estrada cheia de curvas, encrustada na serra. A paisagem era bonita, o sol iluminava a vegetação, um dia perfeito para um passeio com uma boa companhia. Mas ele estava sozinho. Quer dizer, Tatiana estava ao seu lado, de olhos fechados, presa no cinto de segurança. Não era uma boa companhia a Tatiana.

Ela estava morta.

Quem ultrapassava o carro de Breno e se prestasse para reparar quem era o passageiro não veria mais que uma moça bonita em sono profundo. A echarpe preta, comprada em Paris em uma viagem romântica um ano antes, escondia o corte profundo da garganta de Tatiana. Breno sorriu. Não havia sido difícil matar a esposa. Ela sempre fora de estatura pequena, frágil. O problema fora matar o Ricardo. O cara era forte, cheio de músculos, boa pinta. A boa estampa certamente atraíra Tatiana, cansada dele, Breno. Cara chato, sem grana e barrigudo com quem tinha casado há 3 anos. Breno um dia fora um pedaço de mau caminho. Depois relaxou. Engordou, ficou careca e, não demorou muito, corno também.

Bem, Ricardo estava morto. Foi preciso três pancadas na cabeça dele com uma pá para dar fim naquele traste. O corpo ainda estava no apartamento de Breno na cidade, esperando para ser desovado em algum lugar ermo durante a madrugada. A preocupação de Breno agora era se livrar da puta.
O homem pegou uma estrada secundária sem asfalto e que jogava terra por todos os lados. Ele conhecia muito bem aquele lugar. Havia ido várias vezes com a Tati passear por ali, admirar o vale e a natureza exuberante. A esposa adorava aquele lugar, por isto Breno escolheu que ali seria um bom lugar para deixar seu ex-amor. Aliás, ela não merecia mais que um lixão. Mas, puxa... a infeliz estava morta. Era só jogar o corpo despenhadeiro abaixo e tudo estava acabado.

Ele parou o carro na beira da estrada. Era raro qualquer veículo transitar por ali. Fumando e aparentando calma, Breno abriu a porta do carona, pegou Tatiana no colo e sem dificuldade a carregou até a beira do penhasco. Antes de jogá-la, deu uma tragada funda no cigarro e o apagou no chão. Olhou para Tati, beijou-a na testa e no momento seguinte a projetou no ar. Fechou os olhos para escutar melhor o som do corpo batendo nas pedras e galhos de árvores. Depois, silêncio.


Fim de papo.