sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

SOMENTE NOS MEUS SONHOS (Cap. 1)





Lucinda tinha um hábito estranho: frequentar velórios. Costumava visitar cemitérios a qualquer hora dia para saber quem tinha morrido. Quando algum conhecido partia desta para melhor, prontamente Lucinda se oferecia para enfeitar o caixão, fazer coroas de flores e ainda chorava junto com a família.

A mãe de Lucinda tentou proibir aquele gosto pavoroso da filha mais nova. Mas não teve jeito. Com o passar do tempo Lucinda foi se aperfeiçoando tanto que os amigos dos mortos pensavam que ela era da família, tamanha a intimidade que se construía. Quando terminava a função, Lucinda voltava para casa satisfeita. Além de ter ajudado os parentes, também sabia tudo sobre a vida do defunto.  Dona Francisca, a mãe, ficava horrorizada quando Lucinda começava a narrar a vida do falecido e seus pormenores às vezes bem indiscretos e muitas vezes mandava a filha calar a boca.

Era sábado quando Lucinda pegou sua bolsa, pôs o vestido escuro e foi para o cemitério atrás das suas novidades. Era assim que ela se referia aos defuntos. Logo que chegou deparou-se com uma aglomeração maior do que das outras vezes. Havia um número maior de carros e pessoas mais bem vestidas, o que levava a crer que o morto tinha sido alguém importante. Lucinda apertou o passo, empolgada, certa de que aquele dia iria render.
A capela funerária estava cheia de gente. Lucinda conseguiu, com certo custo, chegar perto do caixão. Antes de visualizar quem estava dentro, surpreendeu-se ao ver uma mulher jovem, de cabelos claros e chorando aos soluços quase sobre o morto. As mulheres ao redor a consolavam sem parar, estendendo-lhe lenços que não davam conta de tantas lágrimas. Então Lucinda voltou os olhos para o defunto.

Levou um choque.

*

Não, nunca havia visto aquele homem na vida. Mas… Será que ele estava mesmo morto? Lucinda apertou a bolsa contra o peito e se aproximou lentamente do caixão disputando espaço com os familiares.
Quem era ele?,perguntou-se Lucinda, angustiada. Não devia ter mais de trinta anos. O cabelo escuro estava bem penteado e sua expressão era um tanto conturbada. Parecia que estava prestes a abrir os olhos e saltar dali. Lucinda não conseguia tirar os olhos do morto, tentando adivinhar o que causara seu passamento. Era tão bonito mesmo dentro de um caixão que ela perguntou-se o quanto não teria sido belo quando vivo. Por isto a noiva chorava tão desesperadamente. Como não amar um príncipe daqueles? Oh, meu Deus, gemeu ela, com tanta gente feia por aí, por que um homem daqueles tinha que ter morrido?

— Meu amor… − murmurou a viúva soluçando e acariciando o rosto dele. — Por que você me deixou tão cedo?

Lucinda se fazia a mesma pergunta. Gostaria tanto de tê-lo conhecido em vida! Talvez tivesse até mesmo podido evitar a sua morte. Ela esticou a mão para tocar a dele, um atrevimento que nunca ousara em toda a sua carreira de frequentadora de velórios. Alguém a empurrou bruscamente para o lado fazendo com que Lucinda se desequilibrasse. Outro parente histérico chegara e a moça perdeu o lugar junto ao caixão.

Ela precisava de ar e saber quem era o pobre homem. Desarvorada, Lucinda saiu para o jardim do cemitério procurando alguém disposto a lhe passar todas as informações que precisava. Não precisou caminhar muito. Sentada em um banco próximo a uma árvore, uma simpática senhora parecia apreciar a vista. Um segundo depois Lucinda acomodara-se ao lado dela.

— Dia lindo, não? – Lucinda fingiu estar apreciando a bela manhã. — Pena que tudo está tão triste.
 — É verdade – a mulher suspirou. — Ele gostava de dias assim. Céu azul, passarinhos voando... uma tragédia o que aconteceu.
— De que… de que ele morreu?
— Coração – mais um suspiro, desta vez mais profundo. — Ele estava andando de bicicleta com a Marília quando caiu duro. Ela pensou que fosse uma brincadeira, mas Álvaro não levantou mais. Ela então se aproximou para ver o que estava acontecendo. Foi fulminante.
— Nossa, que horror! – Lucinda não pôde esconder o choque. Um exercício tão simples matara Álvaro. Este era o nome dele. — Não deu tempo de chamar o socorro?
— A pobrezinha da viúva fez tudo o que pôde. Mas quando os médicos chegaram não havia mais nada a fazer.
— Coitado do Álvaro – os olhos de Lucinda lacrimejavam. Tinha certeza que se fosse ela a sua esposa teria cuidado dele tão bem que nada daquilo teria acontecido.
— Um ótimo homem. Eles eram casados há apenas dois anos! Marília não merecia uma sorte destas!
— Que mundo injusto!

A velha se voltou para Lucinda e resolveu perguntar, curiosa:

— Quem é você, afinal?

Lucinda levantou sem dar resposta alguma. Com lágrimas nos olhos retornou para a capela onde Marília continuava com suas lamentações. Achou melhor enfiar-se em um canto onde podia observar o rosto moreno do falecido e sofrer sozinha com sua dor. Quando se deu conta entoava algo semelhante a um mantra:

“Acorde acorde acorde acorde acorde acorde.”

Olhou para os lados, atarantada. Felizmente ninguém havia escutado. Álvaro havia sido um homem expoente na sociedade. Como nunca soubera nada sobre ele?


O enterro saiu próximo ao meio dia. Lucinda não teve chance de acompanhar o cortejo. Para dar adeus ao defunto pelo qual se encantara, ela se pendurou em uma árvore e assistiu ao sepultamento de camarote. Quando tudo acabou e as pessoas lentamente se retiraram do local, Lucinda se aproximou do túmulo. Fez uma pequena oração e jurou a Álvaro que iria voltar no dia seguinte e em todos os outros.

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