Era cerca de onze horas da noite e vô Ricardo fumava cachimbo na
varanda. Dona Iara já tinha ido para a cama e Clarissa, inquieta, não tinha
sono nenhum. Precisava falar com alguém sobre a hospedaria. Aquelas informações
do site não podiam estar certas. Estivera há poucas horas no local e não havia
ruínas de nada.
— Oi, vô.
Ricardo levantou os olhos das palavras cruzadas que estava fazendo.
— Achei que você já tivesse dormindo.
— Estou sem sono, por enquanto – ela puxou uma cadeira e sentou
frente a ele. Pretendia ir direto ao assunto, sem enrolação. — Eu estive
fazendo umas pesquisas agora sobre a cidade.
— Ah, isto é ótimo. Temos muitos lugares bonitos aqui para ver.
— Entrei em um site que falava sobre vários lugares, inclusive
sobre uma hospedaria antiga.
O homem levantou os olhos, intrigado.
— Castelo de Pedra?
Os olhos dela brilharam.
— Você conhece?
— Claro que sim. Era o local mais chique da cidade. Fui a várias
festas lá quando era solteiro. E depois de casado também.
— “Era” o local mais chique?
— Sim, ela está fechada há quase trinta anos. Isto não está no site
também?
Clarissa sentiu o coração acelerar.
— Sim, está... Mas é que... as fotos são tão bonitas que eu não
acreditei.
— Infelizmente, é verdade. O proprietário morreu, já era velho e
estava doente. Depois os herdeiros começaram a brigar entre si. Ninguém nunca
se entendeu. Não sei como está a questão hoje. O certo é que hoje Castelo de
Pedra são só ruínas.
— Ruínas, vô? – Clarissa chegou a se sentir enjoada. — Mas como?
— Não tem explicação, Clarissa. São coisas que acontecem. Parece
que tentaram revitalizar a hospedaria, mas a briga na justiça desestimulou
todos investidores que apareceram.
“Eu não estou louca. Eu vi aquelas crianças. Sentei ao lado de uma
hóspede. Eu assisti Dani tocando piano. Nada estava caindo aos pedaços.”
— Onde ela fica, vô?
Ricardo deu uma risada.
— Não me diga que você pretende fazer uma visita? Sua vó vai
enlouquecer. De qualquer forma, é longe. Talvez de bicicleta você não se canse
tanto. A hospedaria fica quase na saída da cidade, em um bairro que foi
planejado justamente em torno dela. Depois que Castelo de Pedra fechou as
portas, o lugar ficou quase abandonado. Antes era um bairro lindo, muito
arborizado, muitas flores. Parece que ainda mora gente, mas são poucas pessoas.
Eu passei uma vez por lá. Chegou a bater uma certa tristeza, até.
Ele fez uma pausa.
— Você pretende visitar o lugar? Sua curiosidade é tão grande
assim?
Clarissa fez força para manter a voz normal.
— Eu achei as fotos muito bonitas, vô. Estou meio… chocada em
descobrir que não existe mais nada lá.
— A cidade ficou pasma como você está agora quando a hospedaria
fechou. Foi um baque. Parecia que tínhamos perdido alguém da família.
Um vazio no peito, inexplicável, fazia com que a respiração de
Clarissa ficasse entrecortada. Ela ficou em silêncio por alguns instantes
tentando pôr os pensamentos no lugar. Não conseguiu.
— Passaram alguns anos até todos nós nos acostumarmos com a
situação – prosseguiu Ricardo dando uma longa tragada no cachimbo. — Preferia
que tivesse passado um trator por cima do Castelo a saber que está naquele
estado. Você não tem ideia do quanto aquele lugar era lindo, Clarinha. Uma pena
que você não pôde conhecer.
Como explicar ao avô que havia conhecido a hospedaria e um pouco
das suas belezas? Precisava voltar para conferir tudo outra vez. Aquilo a
perturbava de tal maneira que uma dor de cabeça forte começou a incomodá-la.
— Estou impressionada com tudo o que você me contou, vô. Talvez eu
até sonhe com a hospedaria! – Clarissa tentou fazer graça em cima do assunto
que a deixava tão desnorteada. — Bem, eu preciso ir dormir. Já é tarde.
Ricardo consultou o relógio e se espreguiçou.
— Daqui a pouco eu irei também. Boa noite, Clarinha.
Clarissa beijou a bochecha do avô e foi para o quarto. A garota
ficou cerca de uns cinco minutos parada em pé no meio do aposento respirando
fundo. Não havia imaginado coisas. Castelo de Pedra estava em pleno
funcionamento, com hóspedes, com vida! Aquilo tudo não passava de uma piada.
Ela foi até a gaveta e pegou uma folha de papel. Apesar da dor de
cabeça, ainda não pensava em ir para cama. Com uma caneta azul levou cerca de
vinte minutos para desenhar o rosto de Dani. Os professores a consideravam uma
boa desenhista, mas Clarissa nunca levara muito sério. Mas naquela noite ela
precisava demais usar os seus dotes. Quando terminou suspendeu a folha a sua
frente e suspirou. Sim, havia ficado bem parecido.
Apesar de nunca ter ficado cara a cara com Dani, Clarissa tinha
certeza que conseguira passar seus traços principais para o papel. O rapaz do
desenho a encarava com seus olhos doces e curiosos e a boca de lábios finos estavam
em um meio sorriso, exatamente como no momento em que ele tocava piano. Era tão
bonito que Clarissa fechou os olhos sentindo o coração se partir de dor. Sofrer
por um desconhecido não estava nos seus planos. Quando o encontrasse iria
perguntar a ele porque escolhera tocar piano em um lugar virado em ruínas.
“Eu vou voltar a vê-lo, Dani, ou seja lá qual for seu nome. E, por
favor, quando este momento chegar, olhe para mim.”
*
Quando finalmente dormiu, com o desenho ao lado na cabeceira,
Clarissa teve vários sonhos estranhos com Dani e com a hospedaria. Acordou às
nove horas da manhã com a impressão que as garotinhas que encontrara no jardim
da hospedaria faziam algazarra aos pés da sua cama. No entanto, era a avó que
conversava com o marido na cozinha, dando risadas de vez em quando.
— Finalmente você acordou! – saudou Dona Iara esquentando o leite
no fogão. — Esqueci de lhe dizer que hoje temos compromisso na hora do almoço.
A primeira coisa que veio à mente de Clarissa foi a hospedaria. Por
alguns instantes achou que alguma coisa estaria acontecendo por lá.
— Que compromisso, vó? – ela sentou à mesa e pegou um pedaço de
bolo.
— Um encontro de famílias na igreja. Será servido galeto. Assado
pelo seu avô!
A avó parecia bem empolgada contrastando com o humor sombrio da
neta. Seu Ricardo apareceu na cozinha vindo do quintal e exclamou:
— Nem coma muito. Hoje você experimentará o melhor galeto que comeu
na sua vida!
Clarissa tentou sorrir ainda mastigando um pedaço de bolo.
— Que legal. Estou ansiosa.
No fundo o que mais Clarissa queria era voltar à hospedaria e
conferir como estavam as coisas. Mas, pelo visto, naquele domingo seria bem
complicado. Ela tomou o desjejum quase que em silêncio, somente escutando a
conversa animada dos avós. Percebeu que o encontro das famílias da comunidade
era um evento festivo e muito esperado. Será que Dani não iria aparecer por lá
também, mesmo aparentemente sendo um turista?
Clarissa não sabia mais quando havia sido a última vez que seu
coração tinha batido de uma forma normal. Dentro do carro do avô, indo para a
igreja, o desenho de Dani estava bem guardado dentro da bolsa. Fazia bem para
ela olhar para aquela imagem que conseguira construir dele. Durante o trajeto
manteve os olhos nas calçadas, rezando para que pudesse enxergá-lo em alguma
esquina. Foram várias vezes que seu coração saltara ao visualizar algum rapaz com
as mesmas características de Dani. Porém, ao se aproximar, tinha a infeliz
surpresa de perceber que a pessoa em questão era bem diferente.