sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

APARÊNCIAS





Fico pensando o que ela acha de mim. Deve dizer para todas suas amigas que sou uma babaca, que passo todos os dias estudando, não vou à festa nenhuma e nunca me viu com namorado. É quase tudo verdade mesmo. Minha vida nos últimos tempos tem sido em cima dos livros. Festas? Nem sei mais o que é isto. Namorados? Nunca encontrei um garoto que gostasse de mim. Minha vizinha curte a vida sem pensar no amanhã. Pela janela do meu quarto, discreta, acompanho a movimentação. Ela tem um círculo de amigos ruidosos. Eles param na frente do prédio com suas motos potentes. Ou então com carros importados. Imagino quantos lugares divertidos eles frequentam. Ah, ela tem um namorado. Um gatinho. Parece gostar muito dela. Pudera. A garota é uma graça. Loira, cabelos com lindos cachos, magrinha. Eu, de tanto que estudei trancada em casa e só saindo para ir ao cursinho, ganhei algumas gordurinhas que não tinha antes. Meu rosto ficou mais cheiinho e minhas coxas, mais grossas. Agora vou ter que correr atrás do prejuízo. O pior de tudo, ainda por cima, foi que consegui passar no vestibular. Meu sonho era cursar teatro. Claro, não fui forte o bastante para lutar contra meus pais, que sonham em ver a filha mais nova formada em medicina. Mas não era isto que eu queria! Eu queria ser igual a ela, minha vizinha, que não parece ter medo de nada, é livre e resolvida. Um dia destes nos encontramos no elevador. Fiquei constrangida, mal a cumprimentei. Ela também não fez questão de me olhar. Eu sei. Ela me acha uma boçal.  

Fico pensando o que ela acha de mim... Deve dizer para a família dela que sou uma porra louca, que só vive em festas, cercada de amigos desocupados e com um namorado que não acrescenta em nada. É quase tudo verdade mesmo. Meus amigos não são meus amigos. Só pensam neles, são muito egoístas. As nossas festas? Só vou para não ficar presa em casa. Meu namorado? Um bobo, nem gosto dele. Comecei a namorá-lo para fazer ciúmes pro meu ex. Não deu certo. Agora aquele chato não desgruda de mim. Já minha vizinha leva uma vida calma, tranquila.

Sinto inveja dela.

Eu preciso desacelerar um pouco antes que eu enlouqueça. Observo frequentemente a família da menina. Gente pacífica, estruturada. Bem ao contrário da minha. Meus pais são separados, não se falam há anos. Moro com minha mãe e minha irmã. Meu irmão mora com meu pai, quase não vejo os dois. Minha querida mãe pouco se importa com o que faço da minha vida, desde que eu não engravide. Se ela soubesse que eu nem tenho vontade de transar com o idiota... Ele não me dá tesão nenhum. Eu queria ser como minha vizinha, isto sim. Ela é muito bonita. Tem um corpo tipo violão, como os homens gostam. Eu? Sou uma tábua, mal tenho peito, mal tenho bunda. Emagreci de tristeza de uns meses para cá, não sei onde vou parar. E ela é muito inteligente também. Passou para medicina. Era tudo o que eu queria. Meu sonho é ser médica, tratar de gente doente, conseguir a fórmula da juventude e da felicidade e distribuir para o mundo inteiro. Um dia destes nos encontramos no elevador. Ela mal me cumprimentou. Deve me achar uma maluca inconsequente. Magoei e fiquei olhando para o teto o tempo todo. Eu sei. Perto dela sou uma boçal.

 

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A CAIXA






O AMOR QUE SINTO POR VOCÊ DEIXEI GUARDADO NUMA CAIXA.

TALVEZ EU A ENTERRE BEM FUNDO.

TALVEZ NÃO.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

A VIDENTE E A BOLA DE CRISTAL





Cris ficou esperando por notícias do Agnaldo durante longos seis meses. Nem um telefonema, mail, pombo correio. Silêncio total e absoluto.

Meio anos antes, Agnaldo, num misto de arrogância e satisfação, informara para Cris que fora convidado a assumir uma das gerências da multinacional em que trabalhava, em Belém do Pará. Cris exultou. Sim, agora não haveria mais motivos para retardar aquele noivado que já durava três anos. Agnaldo finalmente iria pedi-la em casamento e ambos viveriam uma vida feliz em Belém. Um bom cargo, filhos, vida mansa. A vida que a vidente lhe previra há um tempo estava finalmente acontecendo.

Mas para espanto de Cris, Agnaldo somente comunicara sua transferência para Belém, fizera as malas e em dois dias partira, prometendo notícias assim que se instalasse. A mãe de Cris costumava dizer, sarcástica, que Agnaldo ainda não havia se instalado, tendo em vista a ausência total de sinais vitais.

Num primeiro momento, ela achou que ele estava morto. Não conhecia a família do Agnaldo para obter notícias, mas a avó da Cris, com seus oitenta anos, logo deu o veredicto: notícia ruim chega logo. Agnaldo deveria era estar aproveitando a sua nova vida de solteiro.

Cris desabou. Cachorro, sem vergonha, ordinário. Seria mesmo possível? Naqueles últimos seis meses, Cris emagreceu, não retocou sua tintura loira, andava de tênis e camiseta até no serviço. As colegas, pesarosas, tentavam ajudá-la a sair daquela depressão causada pelo cafajeste, mas Cris não queria se ajudar. Se pelo menos chegasse um mail!, dizia ela para si mesma.

Então ela teve uma idéia brilhante: A vidente! Aquela que lhe previra uma vida maravilhosa poderia dizer o que acontecera com o safado. Cris ligou para a mulher e implorou um horário no mesmo dia. Em menos de duas horas, estava sentada na frente da mulher e da sua bola de cristal.

Mas para espanto seu, a vidente lhe disse as mesmas coisas. Um homem maravilhoso, alguns filhos, uma vida pacata e feliz. Poderia não ser o Agnaldo, mas e daí? O Agnaldo era o único homem da face da terra? Não. Então que Cris ficasse calma e aguardasse. O único cuidado que deveria ter era com um pequeno acidente sem maiores proporções.

Um pouco mais feliz, Cris saiu da vidente com a cabeça nas nuvens. Quando foi atravessar a rua tranquila, na frente da casa da mulher, foi atropelada pelo que ela julgou ser uma bicicleta.

O casamento com o presidente da multinacional em que Agnaldo supostamente ainda trabalhava estava marcado para logo mais às dezessete horas. Três meses depois do atropelamento, Cris se lembrava do acidente rindo de tão feliz. Quando sentira o baque do Audi e caíra no asfalto, ela ficara ligeiramente desacordada. Mãos fortes a seguraram pelo rosto e um perfume a envolveu. Inebriada, ela respirou fundo e entreabriu os olhos. Deparou-se com o homem mais bonito do mundo. Agnaldo sumiu da sua visão para nunca mais voltar. Agora, prestes a casar com seu atropelador, Cris se sentia uma afortunada. A vidente lhe dera sorte, mas tanta sorte, que foi escolhida para ser sua madrinha de casamento. 

O MENINO QUE TINHA ASAS


Quando a criança nasceu, a mãe logo viu que havia algo estranho nas costas do filho. O médico não soube identificar o que eram aqueles dois pequenos membros que saltavam da pele do piá. A mãe se apavorou. Chorou, descabelou-se, entrou em depressão pós-parto ainda no hospital. Mas como o bebê gozava de ótima saúde, foram mãe e filho para casa. Caso surgisse alguma coisa diferente, falou o doutor, eles que voltassem.

E assim seguiu a vida em uma cidadezinha pequena do interior, onde a praça e a igreja eram os lugares mais movimentados. O piá foi crescendo. Aquela coisa nas costas quase nem aparecia. A avó paterna dizia que o guri estava marcado pelo diabo e, por via das dúvidas, nem nos dias de mais calor, o pobre andava sem camisa. Não seria de bom tom os vizinhos verem aquilo.

No dia em que o garoto completou nove anos, as asas finalmente tomaram a forma do que realmente eram. Asas. O menino possuía duas belas asas prateadas que brilhavam com a luz  do sol. A família ficou extasiada. Não havia marca de nascença do diabo. Não! Era ao contrário! Um anjo! Havia um anjo entre eles.

Mas o belo guri de cabelos loiros e encacheados não tinha a menor idéia do encantamento que causava. Entretanto, agora que suas asas tinham se revelado e não cabiam mais dentro da camisa e nem do casaco, ele estava proibido de sair de casa até que os pais decidissem o que fazer.

O menino das asas mal saía para o pátio. A vizinha fofoqueira do lado podia descobrir o segredo. Bem que podiam dizer que estava fantasiado de anjo... Já tinha visto na Bíblia Sagrada da avó a foto de um querubim. Porém, o guri sabia que de anjo não tinha nada. A única coisa que desejava era sair para a rua e jogar bola de gude com os outros meninos, correr de bicicleta e ser como os outros. Era tão simples...

E foi o que ele fez, em certo entardecer. O céu se encontrava violeta, uma brisa gostosa soprava sem parar. Lá fora os amiguinhos, que o julgavam doente, pois nunca mais pusera os pés na rua, corriam sem parar. Aquilo foi demais para um menino de apenas nove anos. Sem pensar duas vezes, ele abriu a porta da rua e se lançou na calçada. Quem reparou primeiro naquelas asas prateadas fugindo pelas aberturas que o pai improvisara na camisa foi o Juca. Pálido, ele apontou para o amigo e berrou:

— Ele tem asas!

Todos os olhos se voltaram para ele. De repente, a praça parou. Do armazém, saiu gente para a calçada para ver quem possuía asas. As crentes da cidade caíram de joelhos. Milagre! Milagre! Havia um anjo na cidade. Assustado, o menino quis correr. As pessoas se aproximavam ávidas de novidades, ávidas por um milagre, ávidas por algo que lhe movimentasse suas pobres vidas.

O garoto começou a ficar com medo, arrependido que estava de haver saído do refúgio do seu lar. Os olhos dos seus vizinhos, aqueles mesmos que conhecia desde que nascera, estavam diferentes, sinistros, quase maldosos. Eles queriam tocar nas suas asas, uma câmera fotográfica explodiu em um flash. Eu não sou anjo nenhum, quis ele gritar. Eu sou como vocês... Entretanto, nenhuma voz saiu dos seus lábios pálidos. Ele possuía asas, os outros não. A diferença era esta. As pessoas o julgavam divino. O menino sabia que era alguém como qualquer outro alguém.

Então, quando o desespero tomou conta do seu coração, suas asas bateram em um ruflar encantador. O último raio de sol iluminou a prata que lhe despontavam nas costas e as pessoas murmuraram um “oh” extasiado. Ele deu meia volta, atarantado, ensandecido no seu medo. Com reverência, as pessoas abriram espaço para o piá passar correndo, as asas batendo. E essas faziam um som que ninguém jamais conseguiu esquecer.

O garoto sentiu que seus pés não estavam mais tocando no chão. Primeiro ele pensou que estava deslizando; depois se sentiu no ar. E quanto mais batia suas asas, mais distante ficava da terra. Sabendo que alcançaria as estrelas, o menino que tinha asas voou cada vez mais alto. E sumiu. Nunca mais apareceu. As pessoas observaram-no desaparecer nas alturas, crendo que ele estava indo em direção a Deus.


Todos queriam ter asas também.