sábado, 20 de janeiro de 2024

UM CONTO DE MISTÉRIO - PARTE 12

 

Lourdes assistia, desolada, Valentina engolir o quinto pãozinho de piroca sem constrangimento nenhum.

― Nossa, tia, que delicinha. A receita você aprendeu com quem?

― Não sei.

― Tudo bem. Entendo que você esteja envergonhada porque a receita veio da sua própria cabeça. Parabéns.

― Eu nem sei o que dizer.

― Mas eu sei. Faça mais uma fornada e comece a vender. A mulherada vai amar – Valentina pegou mais um pãozinho. ― Hoje vou para a academia e malhar duas horas seguidas. Mas está valendo a pena. Nunca comi nada tão gostoso.

― A Angelina também gostou bastante.

― Ah, ela provou também? Bem, vou dar uma descansada. Pense no que te falei. Você vai ficar rica.

Durante o
trajeto para a academia, Valentina e Angelina não paravam de falar nos pãezinhos eróticos de Lourdes, que a tudo escutava, calada. A amiga, então, parecia deslumbrante. Algo nela brilhava, parecia flutuar. Com a sobrinha acontecia o mesmo. O riso estava mais cristalino, os cabelos de Valentina pareciam flutuar a sua volta. O que estava acontecendo? Lourdes se perguntou várias vezes. Será que haviam sido... as piroquinhas?

Na academia Lourdes se concentrou em fazer seu treino, ainda intrigada com a transformação de Valentina e Angelina. Elas estavam diferentes, sem dúvida. De repente, Lourdes flagrou a amiga conversando com um cara já mais maduro, enquanto fazia bíceps. A conversa parecia íntima, ao pé do ouvido. Lourdes levou a mão à boca, surpresa. Olhou para o lado para ver se Valentina já havia percebido também. Contudo, a sobrinha nem treinando estava. Ela e Fabinho bebiam água, muito juntos, na área de descanso. Não era possível. Lourdes, de repente, se sentiu abandonada. Se Valentina e Angelina arrumassem namorados, ficaria sozinha de novo. Isso lhe pareceu aterrador.

Lourdes parou o que estava fazendo, tensa. O horário para ir embora ainda não havia chegado. Fabinho estava preocupado demais em contar coisas engraçadas para Valentina, pois ela não parava de rir, aquele riso solto de pessoas apaixonadas. Ele se esquecera de passar o restante do treino para Lourdes. Angelina simplesmente havia sumido. Desacorçoada, Lourdes pegou suas coisas e foi embora da academia, apressada e sozinha.

Quando chegou em casa comeu três pãezinhos em sequência, quase sem mastigar. Depois sentou no sofá e esperou a transformação na sua vida começar.

Talvez um namorado batesse a sua porta a qualquer momento.


domingo, 14 de janeiro de 2024

UM CONTO DE MISTÉRIO - PARTE 11

 



Angelina colocou de volta, lentamente, a piroca gourmet no lugar. Lambeu os dedos e comentou:

 

― Estão deliciosas. Já provou?

 

Lourdes olhou, desconfiada, para a amiga.

 

― Estão mesmo?

― Claro. Toma – ela esticou uma piroca para Lou. ― Experimenta.

 

Lourdes provou. Primeiro deu uma dentada na ponta, desconfiada da sua própria culinária. Mas Angelina insistiu:

 

― Deixa de ser fresca e engole tudo de uma vez.

 

Foi o que Lourdes fez. A primeira dentada já tinha sido irresistível. Não foi difícil colocar tudo na boca e degustar.

 

― Uau. Nem eu sabia do que era capaz.

― De engolir um inteiro?

― Não. De fazer algo tão gostoso.

 

Angelina olhou para Lourdes, curiosa.

 

― O que você vai fazer com estes pãezinhos?

― Ora, vou comer.

― Lou, olha bem o que eu vou te dizer. Estes pãezinhos têm tudo para fazer o maior sucesso. Põe pra vender. Você vai ficar rica.

― Você está louca, Angelina? Recém enviuvei do traste. O que as pessoas vão dizer se eu começar a vender pãezinhos em forma de piroca?

― Não importa o que digam. Elas vão comprar e comer. Você será um sucesso. É capaz até de aparecer em algum programa de TV.

― Não tenho a menor intenção de ficar famosa.

 

Angelina pegou dois pãezinhos e anunciou:

 

― Bem, acho que você deve pensar melhor. Posso levar estes aqui? Ah, vim perguntar se você quer ir hoje à academia.

― Claro, irei sim – talvez o vizinho bonitão estivesse por lá.

― Ótimo. Eu passo aqui mais tarde, então. Até mais.

 

Angelina foi embora mastigando o pãozinho, quase de olhos fechados. Lourdes ficou parada na cozinha, enrolada numa toalha, olhando para sua produção, sem imaginar do fora capaz de fazer. A melhor coisa seria comer as pirocas gourmet e esquecer a receita. Não queria ser chamada de depravada e pervertida pela cidade inteira.

 

Lourdes voltou para o banheiro para secar o cabelo. Dez minutos depois Valentina retornou da faculdade. Com fome, cumprimentou a tia que não a escutou por causa do barulho do secador, e foi direto para a cozinha.

 

― Tia, sua louca!

 


terça-feira, 9 de janeiro de 2024

UM CONTO DE MISTÉRIO - PARTE 10

 


Era uma manhã agradável e ensolarada. Lourdes abriu as janelas e se deparou com seu jardim florido e com algumas borboletas coloridas sobrevoando a grama. Aqueles dias brilhantes de primavera eram os preferidos do Juarez. Muito frequente, o casal saía para caminhar pelo bairro, encontrando os vizinhos e batendo longos papos. Dias felizes.

 

Imediatamente, Lourdes afastou as lembranças da mente, voltando a sentir a sua mágoa e ódio contra o marido morto. Já passavam 15 dias do falecimento. O fato de descobrir, em pleno velório, que Juarez levava uma vida dupla era tão doloroso que Lourdes não sabia se iria conseguir superar aquilo tão cedo.

 

Valentina apareceu na sala, bocejando. Foi direto para a cozinha pegar uma xícara de café.

 

― Bom dia, tia Lou. Eu preciso ir à faculdade hoje. Talvez eu fique o dia inteiro por lá. Você vai ficar bem?

― Ora, claro que vou.

 

Era a primeira vez que Lourdes ficaria sozinha de verdade desde a morte de Juarez. Até então, a sobrinha não havia desgrudado dela. Por alguns segundos, Lourdes ficou com medo de si própria. Será que suportaria a solidão e todos seus fantasmas a assombrando sem dó? Bem, mas não tinha alternativa. Valentina precisava retomar sua vida. E Lourdes, a dela própria.

 

Uma hora depois Valentina saiu e Lourdes se viu olhando para a casa vazia. Na primeira meia hora chorou encolhida na poltrona. Depois, com vergonha da sua fraqueza, resolveu limpar a casa inteira, atividade que a deixou envolvida até a hora do almoço. Sem fome, optou por não comer nada. Mas, apesar do cansaço, ainda se sentia angustiada. Foi quando resolveu preparar alguma receita. Só não sabia o que fazer ainda.

 

De dentro do armário, Lourdes tirou a farinha de trigo, açúcar e baunilha. Depois pegou o leite e chocolate em pó. Descobriu leite condensado escondido no fundo do armário. Provavelmente, Juarez havia comprado e escondido para comer sozinho. Bem feito, morreu antes.

 

Com todos os ingredientes a sua volta para preparar algum tipo de iguaria saborosa, Lourdes não sabia nem por onde começar. Lembrou-se da ocasião da morte de Juarez. O homem morrera de pau duro no meio da cozinha. Ali mesmo, onde ela estava. Sorrindo, maquiavélica, Lourdes resolveu homenagear o falecido.

 

Depois de 40 minutos Lourdes olhou para a bancada e quase se aplaudiu. Diante dela havia cerca de 20 pãezinhos em forma de piroca. Umas maiores, outras menores, ao gosto do freguês. Ou da freguesa. Era só assar e ver como ficavam. Ela não sabia bem o que fazer com aquilo, mas tinha certeza que Valentina iria morrer de rir quando visse sua produção.

 

Lourdes não saiu do lado do forno até as pirocas gourmet ficarem assadas. Já sobre a mesa, Lourdes pegou uma delas para provar. A maior de todas. Incrível. Lou saboreou de olhos fechados. Nunca havia provado uma piroca daquela qualidade.

 

Já passava das duas horas da tarde e a temperatura lá fora já passava dos trinta graus. Lourdes resolveu tomar um banho, enquanto pensava o que fazer com aquela fornada de pirocas. Comeria tudo? Venderia? Pensou em engolir uma inteira sem mastigar na frente de Régis, o vizinho gato. Ele poderia, quem sabe, deixar de ser só simpático e tomar uma atitude de homem.

 

*

 

Angelina bateu na porta da casa de Lourdes e foi logo entrando. Escutou o som do chuveiro ligado e percebeu que a amiga estava no banho. Com sede, foi até a cozinha pegar um copo de água.

 

― Minha Nossa Senhora, o que é isto? Lourdes, o que deu em você?

 

Com os olhos arregalados, Angelina se aproximou da mesa e pegou uma piroca. Não era das maiores. Ela a analisou, cheirou, chegou à conclusão que era um pãozinho e decidiu que deveria provar.

 

Era uma delícia.

 

De olhos fechados, Angelina devorou a piroca gourmet sentada no chão, deliciada com o sabor. Nunca havia comido nada assim. Já estava pensando em pegar uma piroca maior quando Lourdes apareceu na cozinha e a flagrou naquele estado.

 

― Tira a boca da minha piroca!

 

Continua...



domingo, 7 de janeiro de 2024

UM CONTO DE MISTÉRIO - PARTE 9

 


Pontualmente, às 17 horas, as três novas alunas da academia estavam de volta. Lourdes escolheu uma legging diferente para que seus atributos ficassem mais visíveis e Angelina apareceu de shortinho de lycra. Valentina morria de vergonha da roupa das duas e queria, simplesmente, desaparecer.

 

Fabinho, ao vê-las, não cansou de elogiá-las. Angelina chegou a ficar rosada de excitação. Logo, o personal as colocou para fazerem um treino separado para evitar distrações. Lourdes bem que tentava se concentrar. Mas era difícil resistir aos dotes de Fabinho.

 

Tudo aconteceu quando Lourdes estava em um dos equipamentos para pernas. Fabinho graduava o peso quando olhou para o lado e acenou para alguém. Lourdes voltou seus olhos para o mesmo lugar querendo saber quem era a vadia que Fabinho acenava. Levou um susto ao se deparar com o vizinho bonitão, o Régis.

 

― E aí, pai!

 

Como assim? Pai? Agora estava explicado porque Fabinho era tão bonito e lhe lembrava alguém. Com as pernas bambas, Lourdes observou Régis se aproximando de ambos. Sorrindo, com uma bermuda revelando as pernas bem modeladas, Régis era o cara mais bonito da academia, superando o próprio filho. Do outro lado, Lourdes percebeu Angelina com a cabeça inteira virada para eles.

 

― Boa tarde, meu filho – ele olhou para Lourdes. ― Oi, tudo bem?

― Tudo ótimo – Lourdes temeu ficar vermelha. ― Não vi você mais pela vizinhança.

― Ah, eu tive que fazer algumas viagens – Régis olhou para o filho e explicou. ― Lourdes é minha vizinha.

― Sério? Quando eu for visitar meu pai vou aproveitar para ir à sua casa tomar um chá, Lourdes.

Uma espécie de excitação percorreu o corpo de Lourdes. Imaginou um sexo à três com aqueles dois deuses gregos. Em seguida, tentou se conter. Não era lugar nem hora para ter pensamentos daquele tipo.

 

Mas estava sendo difícil.

 

― Vou adorar receber os dois. Sou expert em fazer chás.

 

De repente, Angelina apareceu saltitante e parou ao lado deles.

 

― Nossa, que surpresa! Régis, você treina aqui também?

 

As faces de Angelina estavam coradas. E os olhos eram duas bolitas brilhantes. Lourdes fez um sinal discreto com a cabeça para que ela vazasse dali. Angelina ficou.

 

― Sim, esta é a academia do meu filho.

― Não! Verdade? Que beleza!

― Bem, meninas. Foi um prazer encontrá-las aqui. Conversamos outra hora.

 

Lourdes deu um aceno para ele e Régis foi fazer seu treino. Mais tarde, na saída, enquanto vinham caminhando lentamente pela rua calma, Angelina não parava de olhar para trás. Até que Lourdes explodiu.

 

― Será que você pode parar de ficar controlando se o Régis está vindo também? Chega a ser ridículo uma mulher da sua idade tendo este tipo de comportamento.

― Não estou fazendo nada demais. E quem disse que estou esperando para ver se o vizinho vem vindo? Ele é o único homem do mundo que mora por aqui?

― Meu Deus do céu! – Valentina deu um grito no meio da rua. ― Já estou arrependida de ter convidado vocês duas para treinar comigo. De agora em diante eu vou vir sozinha. Não quero mais passar vergonha com vocês. Estão desesperadas por macho? Então se matem entre si. Boa tarde.

 

Furiosa, Valentina caminhou apressada à frente de ambas, deixando-as para trás. Angelina comentou:

 

― Acho que ela está precisando de um namorado.

― E você de um banho gelado.

― Credo, Lou. Quanta amargura – Angelina olhou uma derradeira vez para trás. ― Acho que ele não vem mesmo.

 

Continua...