segunda-feira, 25 de março de 2024

NOITES SOMBRIAS


 

Nem sei como tudo começou. Aliás, sei sim. Foi na pandemia, bem no início, naqueles primeiros meses que não havia vacina, a gente se sufocava com as máscaras e o fim do mundo parecia estar logo ali.

Quem primeiro pegou a peste foi meu irmão mais velho, Leandro. Além de irmão, também era meu ídolo, protetor, corajoso, invencível. Por isso não acreditei quando ele começou a sentir falta de ar e todos aqueles outros sintomas pavorosos. Juro, dentre todas as pessoas do mundo, achei que o Leandrinho nunca pegaria a doença.

Mas ele pegou.

Minha mãe foi logo em seguida. De repente, na nossa casa havia duas pessoas bem doentes, isoladas cada uma no seu quarto. Meu pai, vivo, saudável e apavorado, me mandou para a peça dos fundos, no nosso terreno mesmo, mas afastada da casa, onde minha querida avó materna viveu feliz seus últimos anos de vida. Lembro que quando entrei na casinha senti o perfume que ela usava, uma água de colônia antiga. Lá tinha cheiro de talco, da comidinha cadeira que vovó tanto adorava fazer pra mim e as flores que ela cultivava e que nunca deixei  morrer. Os aromas estavam lá e me acalentavam nos meus momentos de angústia e desespero. Lá fiquei sem pôr o nariz para a rua durante um mês. Nestes trinta dias meu pai trazia comida, água, refrigerantes, docinhos, tudo o que fosse para me distrair. Com meu notebook, eu tinha acesso ao mundo e as notícias horríveis que não paravam de chegar. Isolada do mundo, eu não via nem Leandro e nem minha mãe. Aliás, nunca mais os vi. Morreram com diferença de dois dias após algum tempo passado num hospital. Desesperei-me sozinha, não tinha um ombro para chorar a perda. Meu pai me informou pelo aplicativo de mensagens, nervoso, tenso, me proibindo de ir no enterro deles. Com ele, felizmente, nada aconteceu. Voltei para a casa da frente uma semana depois da partida da mamãe, a última a falecer, depois que meu pai fez uma limpeza pesada por tudo.  

Havia um imenso buraco em cada peça daquela casa. Temendo que eu pegasse a peste, papai despachou tudo o que havia no quarto do Leandro. Chorei de raiva. Fiquei sem nenhuma lembrança dele, palpável. Com minha mãe foi igual. Era estranho dizer que eu estava em casa, sendo que aquela casa não era mais meu lar tão amado.

Eu tinha recém feito 16 anos. Fiz aniversário sozinha na peça dos fundos um pouco antes dos dois partirem. A única companhia que tive foi da minha vó. Esta mesma, a que tinha morrido poucos anos antes. Juro que a vi em uma das sombras da sala, sorrindo para mim.

Tentei voltar à vida normal, recusando-me a morrer junto com eles. Minhas aulas eram remotas, o contato com meus colegas era virtual. Até um namoradinho virtual, de outro estado eu arrumei neste meio tempo. As saídas ao supermercado eram controladas. Meu pai vivia meio apavorado, no início. Porém, o luto dele passou bem rápido.

Reparei que ele saía de casa mais frequente do que antes. Papai era contador e conseguia fazer home office. Mas, à medida que as restrições iam diminuindo, ele passou a ficar mais tempo fora. Não dei muita importância. O dia em que voltei às aulas presenciais foi comemorado. Mesmo de máscara, fizemos algazarra e festa. Naquele dia resolvi ir almoçar no shopping com a Luíza. Foi ela que me deu um cutucão que quase quebrou minhas costelas enquanto passeávamos de braço dado pela praça de alimentação.

— Aquele cara se agarrando com a loira não é o tio Oscar?

Claro que não era. Despretensiosamente, olhei para o lado. Era meu pai. Como se fosse um garotão de vinte anos, ele acariciava as costas de uma vadia que estava praticamente sentada no colo dele e com uma saia tão curta que eu quase enxerguei seu útero.

Fiquei sem palavras, chocada. Luiza me deu um puxão.

— Faz de conta que não viu e vamos sair daqui.

— Mas como ele tem coragem, Lu? – eu estava muito inconformada. — Não tem oito meses que ele ficou viúvo.

Luiza saiu me arrastando pelos corredores do shopping.

— Você sabe como os homens são. O tempo de luto deles é diferente.

— Olha o tipo de mulher que ele pegou! Uma vadia, quase mostrando a calcinha.

— Menina, calma. Ele...

— Lu, ele não me disse nada. Agora eu estou entendendo muita coisa.

Não consegui sequer comer nada naquele dia. Minha ideia era bater de frente com papai quando ele chegasse em casa. Porém, não fiz nada. Ele retornou por volta das oito horas da noite muito bem-humorado e ainda me trouxe uma roupa nova. Mais tarde, deitada na cama e muito magoada, pensei que ele poderia pelo menos ter me contado que estava com uma namorada nova. Até quando ele pretendia me esconder seu novo status de relacionamento eu não fazia a menor ideia.

Aquela vida dupla levou dois meses. E eu aguentando tudo trancado na goela. Um domingo, aniversário dele, papai resolveu fazer uma festa familiar, com meus tios, primos e agregados. Era a primeira reunião da parentada depois da pandemia, depois das perdas e que seria na casa do meu padrinho. Achei que ele levaria a vaca e que me avisaria antes por consideração à única filha que lhe restara. Mas não. Foi surpresa. Papai apareceu com a loura pendurada nele. Surpresa geral. Tentei me manter neutra ante a cara de espanto e algum desagrado por parte de quase toda a família.

Marcia, este era o nome dela. Marcinha, para meu pai. De fato, Marcia não era uma pessoa ruim. Se esforçou para ser simpática, sorriu para mim algumas vezes, mas não tivemos nenhum assunto em comum. Naquela noite meu pai não dormiu em casa. No dia seguinte ele inventou de iniciar uma reforma na pecinha dos fundos. Não entendi o motivo, o lugar estava em perfeitas condições. Algumas semanas mais tarde caiu a ficha quando tudo ficou pronto. A casinha dos fundos era para mim. Meu pai a deixou fofa e clean (mais tarde descobri que Marcia era decoradora de interiores) para eu morar lá, já que Marcia estava de mudança para nossa casa, lugar onde fomos tão felizes. Certo, entendo que ele tem todo o direito de reconstruir sua vida. A questão é que, nesta reconstrução, eu sobrei.

E um plano mirabolante e aterrador até mesmo para mim começou a tomar forma nas noites sombrias que se seguiram.



... se você acha a história interessante, escreva nos comentários para eu postar a continuação.

 

sábado, 24 de fevereiro de 2024

UM CONTO DE MISTÉRIO - PARTE 15

 


Lourdes não soube dizer quanto tempo ficou encostada no balcão da pia olhando para Régis, na esperança que ele se mexesse. De repente, escutou o motor de um carro parando frente a sua casa e a voz feliz de Valentina. Logo em seguida a porta da frente se abriu. Valentina entrou, falando alto:

- Tia, você está em casa?

A luz da sala foi acesa. Lourdes, sem voz e atordoada, não respondeu. Escutou os passos da sobrinha se dirigindo até a cozinha. Precisava se acalmar para tomar controle da situação.

- Meu Deus, que merda é esta?

Valentina parou na porta, surpresa e pálida.

- Tia, o que você fez?

- Me defendi - Lourdes conseguiu falar à meia voz.

Para chegar até a tia, Valentina precisou saltar por cima do cadáver de Régis.

- Você está gelada.

Silêncio.

- Pode me contar o que houve, por favor? Estou meio que passando mal.

Em poucas palavras, Lourdes contou tudo, desde o convite para andar de bike até o quase estupro.

- Este filho da puta não me respeitou.

- Tia, tudo bem - Valentina se posicionou de costas para o defunto, evitando olhar para ele. - Tente respirar com mais calma.

Rápida, Valentina pegou o celular do bolso. - Vou chamar a polícia.

- Não!

O berro de Lourdes foi bem sonoro e Valentina deixou o celular cair sobre a barriga de Régis. Lourdes agarrou o aparelho e não o devolveu para a sobrinha.

- Não o quê? Tia, tem um cadáver na sua cozinha!

- Mais um.

Lourdes soltou uma gargalhada histérica e sinistra que assustou Valentina.

- Não vou chamar polícia porra nenhuma. Eu vou sair presa daqui.

- Alegue legítima defesa.

- Quem vai acreditar em mim? A cidade inteira vai começar a falar que coloquei um homem dentro de casa mal Juarez esfriou. Eu matei um homem, Valentina!

- Muito bem. - Valentina cruzou os braços. - E você pretende fazer o que com o corpo do cara?

- Enterrar o cara no meu quintal. Com a sua ajuda.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

UM CONTO DE MISTÉRIO - PARTE 14

 - Não chega perto de mim!

Era inacreditável o que estava acontecendo. O que começara com um romântico passeio de bicicleta, se transformara em algo bizarro. O vizinho galã se transformara numa besta pervertida pronto para atacá-la.


- Vamos, querida. Não adianta resistir.


Régis se encostou em Lourdes e ela pôde sentir o membro duro ficando sua barriga. Numa atitude desesperada, cuspiu nele. No mesmo instante ele se afastou com o rosto retorcido em uma máscara de raiva.


- Para o seu próprio bem, seja boazinha.


Novamente, Régis fez menção de partir para o ataque. Lourdes, sem pensar duas vezes, atirou o chá quente no rosto dele. Régis urrou, cego pelo líquido fervente. E ameaçou:


- Eu vou acabar com você


Mas antes que ele conseguisse esboçar qualquer outra reação, Lourdes quem investiu contra ele. Usando uma força que não sabia possuir, deu um empurrão no seu agressor. Foi o suficiente para ele tropeçar nas próprias pernas, se desequilibrar e cair para trás. Antes da queda, contudo, Régis bateu a nuca da mesa.


Lourdes ficou por um minuto inteiro observando o corpo daquele homem grande caído  no chão da sua cozinha, imóvel, exatamente no lugar onde Juarez tinha partido desta para melhor.


- Levanta, desgraçado - murmurou. - Abra este maldito olho.


Nada. Lourdes, em pânico, se agachou no chão e tentou procurar o pulso de Régis. Não encontrou. As xícaras, espatifadas no chão, davam um toque final naquela cena de terror.


Precisava mandar, urgente, benzer aquela cozinha.







sábado, 10 de fevereiro de 2024

UM CONTO DE MISTÉRIO - PARTE 13



Lourdes dormiu sentada no sofá sem se dar conta. De repente, acordou por volta das oito horas da noite, assustada. A casa continuava silenciosa. Valentina não tinha chegado ainda. Devia estar namorando com Fabinho em algum lugar. Seu coração ficou ainda mais apertado. Por via das dúvidas, foi até a cozinha e engoliu mais uma piroquinha só para garantir. Naquele exato momento ouviu uma batida na porta. 

Valentina devia ter esquecido a chave.

Mais aliviada e ainda com um último pedaço de pão de piroca na boca, Lourdes atravessou a sala e abriu a porta. Régis lhe sorria, sedutor. 

- Boa noite - cumprimentou ele. - Estou atrapalhando?

O pão desceu direto goela abaixo. 

- Er... claro que não. Tudo bem com você?

- Tudo ótimo. Vim te fazer um convite.

Mil coisas passavam pela cabeça de Lourdes. Não era possível que a magia do pãozinho já estivesse fazendo efeito.

- Ah é? - ela chegou a sentir um calorão na periquita. - Agora fiquei curiosa.

- Quer dar uma volta de bike?

Régis apontou para o portão. Uma bicicleta de primeira linha estava encostada ali, reluzente como o dono. Lourdes sentiu um nó no estômago. Lembrou do seu último passeio de bicicleta. Foi quando Juarez caiu duro no chão da cozinha vitimado pelo enfarte fulminante.

Bem, Juarez estava morto e no inferno. Régis era diferente.

- Adoraria. Espere um instante que eu vou buscar a minha.

A noite estava agradável. Lourdes se esqueceu da existência de Valentina e da amiga. Provavelmente, deviam estar curtindo a companhia dos seus parceiros, tal qual ela fazia. Régis era um homem muito agradável. Além de bonito e gostoso, tinha um papo simples e fluído. Várias vezes Lourdes se pegou rindo feito uma adolescente abobada e apaixonada. Ah, Régis... e aquela bermuda de ciclista que marcava tudo, inclusive tudo mesmo? Era difícil para ela desviar o olhar daquela potência toda. Juarez dava pro gasto. Régis, contudo, estava em um patamar muito superior.

Não havia ninguém na rua. Naquela noite gostosa, as pessoas haviam se recolhido mais cedo. Melhor assim. Lourdes poderia desfrutar melhor da companhia de Régis, sem ninguém ficar enchendo o saco dizendo que ela recém havia enviuvado e já tinha achado um macho.

Uma hora e meia depois, Lourdes já estava com as pernas sem força de tanto pedalar. Gentil, vendo que ela estava cansada, Régis propôs que fossem voltando para casa. A volta foi ainda mais divertida. Risos, olhares trocados com mais intenções, calorão e arrepios. Lourdes se sentiu no paraíso.

Quando dobrou a rua em que morava, Lourdes percebeu que sua casa ainda estava às escuras, sinal que Valentina ainda não havia chegado do seu encontro com Fabinho. Ela teve vontade de rir. Enquanto Valentina se divertia com o filho, ela se divertia com pai. Nossa, parecia coisa de novela.

- Do que você está rindo?

Régis fez a pergunta, curioso. Lourdes tentou se controlar.

- Nada demais. Só estava pensando que seria bom você entrar e tomar um chá comigo.

- Será ótimo.

A intenção de Lourdes realmente não era ir além de um chá de hortelã. Até porque não queria passar a imagem de uma mulher fácil. Talvez trocar uns beijinhos e só. 

Régis deixou a bicicleta no jardim da casa e seguiu Lourdes para dentro da casa. Ele elogiou a decoração e o perfume que deixava um aroma de lavanda nos ambientes. Na cozinha, Lourdes tratou de cobrir com um pano o que sobrara das piroquinhas e passou a ferver a água para o chá, de costas para ele.

Régis sentou em um banquinho e o papo rolava solto. Lourdes esperava que Valentina demorasse BEM a chegar. Não via a hora de trocar uns beijos com aquele homem gentil e sensível. A água esquentou e Lourdes preparou os cházinhos. Se voltou para ele e quase deixou as xícaras se espatifarem no chão. Régis estava com seu membro para fora. Era uma coisa enorme, tão diferente do Juarez, coitado. Lourdes empalideceu.

- O que é isso, criatura?

Lourdes se surpreendeu com o olhar de Régis. De uma hora para outra, ele deixara de ser aquele cara gentil e aprazível. Agora parecia uma besta tarada, olhando-a como se Lourdes fosse um pedaço de carne a sua disposição. Todo o desejo dela foi embora. Nojo e medo eram seus sentimentos.

- O que acha? Dá conta?

"Não, não dou. Inclusive, socorro."

Mas não havia ninguém para lhe salvar.

- Acho que você confundiu as coisas.

- Eu confundi? - Régis ficou em pé com o negócio em riste. - Você me convida para entrar na sua casa para tomar chá. É isto mesmo que você pensa que eu quero?

Ele deu um passo para a frente, ameaçador. Lourdes ficou segurando as xícaras e as mãos já tremiam, quase derrubando o líquido quente. Paralisada.

- Melhor você nem chegar perto. - Lourdes tentou firmar a voz. Não deu certo.

- A única coisa que você tem que fazer é colaborar.

Cruzes. Lourdes percebeu que seria estuprada na cozinha de casa. E não fazia a menor ideia de como sair daquela enrascada.



sábado, 20 de janeiro de 2024

UM CONTO DE MISTÉRIO - PARTE 12

 

Lourdes assistia, desolada, Valentina engolir o quinto pãozinho de piroca sem constrangimento nenhum.

― Nossa, tia, que delicinha. A receita você aprendeu com quem?

― Não sei.

― Tudo bem. Entendo que você esteja envergonhada porque a receita veio da sua própria cabeça. Parabéns.

― Eu nem sei o que dizer.

― Mas eu sei. Faça mais uma fornada e comece a vender. A mulherada vai amar – Valentina pegou mais um pãozinho. ― Hoje vou para a academia e malhar duas horas seguidas. Mas está valendo a pena. Nunca comi nada tão gostoso.

― A Angelina também gostou bastante.

― Ah, ela provou também? Bem, vou dar uma descansada. Pense no que te falei. Você vai ficar rica.

Durante o
trajeto para a academia, Valentina e Angelina não paravam de falar nos pãezinhos eróticos de Lourdes, que a tudo escutava, calada. A amiga, então, parecia deslumbrante. Algo nela brilhava, parecia flutuar. Com a sobrinha acontecia o mesmo. O riso estava mais cristalino, os cabelos de Valentina pareciam flutuar a sua volta. O que estava acontecendo? Lourdes se perguntou várias vezes. Será que haviam sido... as piroquinhas?

Na academia Lourdes se concentrou em fazer seu treino, ainda intrigada com a transformação de Valentina e Angelina. Elas estavam diferentes, sem dúvida. De repente, Lourdes flagrou a amiga conversando com um cara já mais maduro, enquanto fazia bíceps. A conversa parecia íntima, ao pé do ouvido. Lourdes levou a mão à boca, surpresa. Olhou para o lado para ver se Valentina já havia percebido também. Contudo, a sobrinha nem treinando estava. Ela e Fabinho bebiam água, muito juntos, na área de descanso. Não era possível. Lourdes, de repente, se sentiu abandonada. Se Valentina e Angelina arrumassem namorados, ficaria sozinha de novo. Isso lhe pareceu aterrador.

Lourdes parou o que estava fazendo, tensa. O horário para ir embora ainda não havia chegado. Fabinho estava preocupado demais em contar coisas engraçadas para Valentina, pois ela não parava de rir, aquele riso solto de pessoas apaixonadas. Ele se esquecera de passar o restante do treino para Lourdes. Angelina simplesmente havia sumido. Desacorçoada, Lourdes pegou suas coisas e foi embora da academia, apressada e sozinha.

Quando chegou em casa comeu três pãezinhos em sequência, quase sem mastigar. Depois sentou no sofá e esperou a transformação na sua vida começar.

Talvez um namorado batesse a sua porta a qualquer momento.


domingo, 14 de janeiro de 2024

UM CONTO DE MISTÉRIO - PARTE 11

 



Angelina colocou de volta, lentamente, a piroca gourmet no lugar. Lambeu os dedos e comentou:

 

― Estão deliciosas. Já provou?

 

Lourdes olhou, desconfiada, para a amiga.

 

― Estão mesmo?

― Claro. Toma – ela esticou uma piroca para Lou. ― Experimenta.

 

Lourdes provou. Primeiro deu uma dentada na ponta, desconfiada da sua própria culinária. Mas Angelina insistiu:

 

― Deixa de ser fresca e engole tudo de uma vez.

 

Foi o que Lourdes fez. A primeira dentada já tinha sido irresistível. Não foi difícil colocar tudo na boca e degustar.

 

― Uau. Nem eu sabia do que era capaz.

― De engolir um inteiro?

― Não. De fazer algo tão gostoso.

 

Angelina olhou para Lourdes, curiosa.

 

― O que você vai fazer com estes pãezinhos?

― Ora, vou comer.

― Lou, olha bem o que eu vou te dizer. Estes pãezinhos têm tudo para fazer o maior sucesso. Põe pra vender. Você vai ficar rica.

― Você está louca, Angelina? Recém enviuvei do traste. O que as pessoas vão dizer se eu começar a vender pãezinhos em forma de piroca?

― Não importa o que digam. Elas vão comprar e comer. Você será um sucesso. É capaz até de aparecer em algum programa de TV.

― Não tenho a menor intenção de ficar famosa.

 

Angelina pegou dois pãezinhos e anunciou:

 

― Bem, acho que você deve pensar melhor. Posso levar estes aqui? Ah, vim perguntar se você quer ir hoje à academia.

― Claro, irei sim – talvez o vizinho bonitão estivesse por lá.

― Ótimo. Eu passo aqui mais tarde, então. Até mais.

 

Angelina foi embora mastigando o pãozinho, quase de olhos fechados. Lourdes ficou parada na cozinha, enrolada numa toalha, olhando para sua produção, sem imaginar do fora capaz de fazer. A melhor coisa seria comer as pirocas gourmet e esquecer a receita. Não queria ser chamada de depravada e pervertida pela cidade inteira.

 

Lourdes voltou para o banheiro para secar o cabelo. Dez minutos depois Valentina retornou da faculdade. Com fome, cumprimentou a tia que não a escutou por causa do barulho do secador, e foi direto para a cozinha.

 

― Tia, sua louca!

 


terça-feira, 9 de janeiro de 2024

UM CONTO DE MISTÉRIO - PARTE 10

 


Era uma manhã agradável e ensolarada. Lourdes abriu as janelas e se deparou com seu jardim florido e com algumas borboletas coloridas sobrevoando a grama. Aqueles dias brilhantes de primavera eram os preferidos do Juarez. Muito frequente, o casal saía para caminhar pelo bairro, encontrando os vizinhos e batendo longos papos. Dias felizes.

 

Imediatamente, Lourdes afastou as lembranças da mente, voltando a sentir a sua mágoa e ódio contra o marido morto. Já passavam 15 dias do falecimento. O fato de descobrir, em pleno velório, que Juarez levava uma vida dupla era tão doloroso que Lourdes não sabia se iria conseguir superar aquilo tão cedo.

 

Valentina apareceu na sala, bocejando. Foi direto para a cozinha pegar uma xícara de café.

 

― Bom dia, tia Lou. Eu preciso ir à faculdade hoje. Talvez eu fique o dia inteiro por lá. Você vai ficar bem?

― Ora, claro que vou.

 

Era a primeira vez que Lourdes ficaria sozinha de verdade desde a morte de Juarez. Até então, a sobrinha não havia desgrudado dela. Por alguns segundos, Lourdes ficou com medo de si própria. Será que suportaria a solidão e todos seus fantasmas a assombrando sem dó? Bem, mas não tinha alternativa. Valentina precisava retomar sua vida. E Lourdes, a dela própria.

 

Uma hora depois Valentina saiu e Lourdes se viu olhando para a casa vazia. Na primeira meia hora chorou encolhida na poltrona. Depois, com vergonha da sua fraqueza, resolveu limpar a casa inteira, atividade que a deixou envolvida até a hora do almoço. Sem fome, optou por não comer nada. Mas, apesar do cansaço, ainda se sentia angustiada. Foi quando resolveu preparar alguma receita. Só não sabia o que fazer ainda.

 

De dentro do armário, Lourdes tirou a farinha de trigo, açúcar e baunilha. Depois pegou o leite e chocolate em pó. Descobriu leite condensado escondido no fundo do armário. Provavelmente, Juarez havia comprado e escondido para comer sozinho. Bem feito, morreu antes.

 

Com todos os ingredientes a sua volta para preparar algum tipo de iguaria saborosa, Lourdes não sabia nem por onde começar. Lembrou-se da ocasião da morte de Juarez. O homem morrera de pau duro no meio da cozinha. Ali mesmo, onde ela estava. Sorrindo, maquiavélica, Lourdes resolveu homenagear o falecido.

 

Depois de 40 minutos Lourdes olhou para a bancada e quase se aplaudiu. Diante dela havia cerca de 20 pãezinhos em forma de piroca. Umas maiores, outras menores, ao gosto do freguês. Ou da freguesa. Era só assar e ver como ficavam. Ela não sabia bem o que fazer com aquilo, mas tinha certeza que Valentina iria morrer de rir quando visse sua produção.

 

Lourdes não saiu do lado do forno até as pirocas gourmet ficarem assadas. Já sobre a mesa, Lourdes pegou uma delas para provar. A maior de todas. Incrível. Lou saboreou de olhos fechados. Nunca havia provado uma piroca daquela qualidade.

 

Já passava das duas horas da tarde e a temperatura lá fora já passava dos trinta graus. Lourdes resolveu tomar um banho, enquanto pensava o que fazer com aquela fornada de pirocas. Comeria tudo? Venderia? Pensou em engolir uma inteira sem mastigar na frente de Régis, o vizinho gato. Ele poderia, quem sabe, deixar de ser só simpático e tomar uma atitude de homem.

 

*

 

Angelina bateu na porta da casa de Lourdes e foi logo entrando. Escutou o som do chuveiro ligado e percebeu que a amiga estava no banho. Com sede, foi até a cozinha pegar um copo de água.

 

― Minha Nossa Senhora, o que é isto? Lourdes, o que deu em você?

 

Com os olhos arregalados, Angelina se aproximou da mesa e pegou uma piroca. Não era das maiores. Ela a analisou, cheirou, chegou à conclusão que era um pãozinho e decidiu que deveria provar.

 

Era uma delícia.

 

De olhos fechados, Angelina devorou a piroca gourmet sentada no chão, deliciada com o sabor. Nunca havia comido nada assim. Já estava pensando em pegar uma piroca maior quando Lourdes apareceu na cozinha e a flagrou naquele estado.

 

― Tira a boca da minha piroca!

 

Continua...



domingo, 7 de janeiro de 2024

UM CONTO DE MISTÉRIO - PARTE 9

 


Pontualmente, às 17 horas, as três novas alunas da academia estavam de volta. Lourdes escolheu uma legging diferente para que seus atributos ficassem mais visíveis e Angelina apareceu de shortinho de lycra. Valentina morria de vergonha da roupa das duas e queria, simplesmente, desaparecer.

 

Fabinho, ao vê-las, não cansou de elogiá-las. Angelina chegou a ficar rosada de excitação. Logo, o personal as colocou para fazerem um treino separado para evitar distrações. Lourdes bem que tentava se concentrar. Mas era difícil resistir aos dotes de Fabinho.

 

Tudo aconteceu quando Lourdes estava em um dos equipamentos para pernas. Fabinho graduava o peso quando olhou para o lado e acenou para alguém. Lourdes voltou seus olhos para o mesmo lugar querendo saber quem era a vadia que Fabinho acenava. Levou um susto ao se deparar com o vizinho bonitão, o Régis.

 

― E aí, pai!

 

Como assim? Pai? Agora estava explicado porque Fabinho era tão bonito e lhe lembrava alguém. Com as pernas bambas, Lourdes observou Régis se aproximando de ambos. Sorrindo, com uma bermuda revelando as pernas bem modeladas, Régis era o cara mais bonito da academia, superando o próprio filho. Do outro lado, Lourdes percebeu Angelina com a cabeça inteira virada para eles.

 

― Boa tarde, meu filho – ele olhou para Lourdes. ― Oi, tudo bem?

― Tudo ótimo – Lourdes temeu ficar vermelha. ― Não vi você mais pela vizinhança.

― Ah, eu tive que fazer algumas viagens – Régis olhou para o filho e explicou. ― Lourdes é minha vizinha.

― Sério? Quando eu for visitar meu pai vou aproveitar para ir à sua casa tomar um chá, Lourdes.

Uma espécie de excitação percorreu o corpo de Lourdes. Imaginou um sexo à três com aqueles dois deuses gregos. Em seguida, tentou se conter. Não era lugar nem hora para ter pensamentos daquele tipo.

 

Mas estava sendo difícil.

 

― Vou adorar receber os dois. Sou expert em fazer chás.

 

De repente, Angelina apareceu saltitante e parou ao lado deles.

 

― Nossa, que surpresa! Régis, você treina aqui também?

 

As faces de Angelina estavam coradas. E os olhos eram duas bolitas brilhantes. Lourdes fez um sinal discreto com a cabeça para que ela vazasse dali. Angelina ficou.

 

― Sim, esta é a academia do meu filho.

― Não! Verdade? Que beleza!

― Bem, meninas. Foi um prazer encontrá-las aqui. Conversamos outra hora.

 

Lourdes deu um aceno para ele e Régis foi fazer seu treino. Mais tarde, na saída, enquanto vinham caminhando lentamente pela rua calma, Angelina não parava de olhar para trás. Até que Lourdes explodiu.

 

― Será que você pode parar de ficar controlando se o Régis está vindo também? Chega a ser ridículo uma mulher da sua idade tendo este tipo de comportamento.

― Não estou fazendo nada demais. E quem disse que estou esperando para ver se o vizinho vem vindo? Ele é o único homem do mundo que mora por aqui?

― Meu Deus do céu! – Valentina deu um grito no meio da rua. ― Já estou arrependida de ter convidado vocês duas para treinar comigo. De agora em diante eu vou vir sozinha. Não quero mais passar vergonha com vocês. Estão desesperadas por macho? Então se matem entre si. Boa tarde.

 

Furiosa, Valentina caminhou apressada à frente de ambas, deixando-as para trás. Angelina comentou:

 

― Acho que ela está precisando de um namorado.

― E você de um banho gelado.

― Credo, Lou. Quanta amargura – Angelina olhou uma derradeira vez para trás. ― Acho que ele não vem mesmo.

 

Continua...


domingo, 24 de dezembro de 2023

UM CONTO DE MISTÉRIO - PARTE 8


 

Naquela mesma tarde Valentina levou Lourdes e Angelina para comprar roupas de academia numa loja no centro da cidade. Angelina mal se continha de tanta animação. Já Lourdes deixou a sobrinha escolher as peças sem sequer ver o que a garota pegava por conta própria. Porém, quando foi experimentar as roupas em casa, se assustou com as cores e o quanto que as peças se ajustavam em seu corpo.

 

― Valentina, pelo amor de Deus – Lourdes deu uma voltinha na frente do espelho. ― Parece que eu vou sair em uma escola de samba. E está muito justa!

 

Angelina estava por ali também experimentando suas roupas novas de academia.

 

― Então, gurias... Acho que fiquei bem, não é?

 

Lourdes olhou para a amiga e torceu o nariz.

 

― Você está muito indecente, isso sim.

― Amiga – Angelina se mostrava muito satisfeita com seu novo visual ― eu tenho 51 anos. O que eu tenho a perder? Olhem só – ela apontou para a parte de trás do corpo ― vou precisar caprichar no glúteo. Minha bunda está meio caidinha ou é impressão?

 

― Viu, tia? Se inspire na Angelina. Vocês vão bombar na academia. Não vejo a hora de chegarmos lá!

― Uhu! – vibrou Angelina.

― Socorro, Deus – gemeu Lourdes.

 

*

 

As três novas alunas da academia chegaram ao final da tarde. Angelina e Valentina eram pura animação. Lourdes, murcha, tentava se esconder atrás das duas. O trio foi recebido pela recepcionista animada.

 

― Uau, quantas gatas lindas! Bem-vindas, meninas! Prontas para ficarem mais gostosas?

― Ô... – fez Lourdes revirando os olhos, entediada. Prontamente levou uma cotovelada de Valentina bem no meio das costelas.

― Me sigam, meninas! Vamos até o andar de cima, para a sala de musculação. É onde a magia acontece.

 

Meu Deus, pensou Lourdes, irritada com a empolgação forçada da recepcionista. Será que ela era sempre tão feliz assim?

 

Lourdes entrou em um grande salão com muitos aparelhos de musculação e várias pessoas treinando. Ela pensou seriamente em dar meia volta e sair correndo.

 

― Vou deixar vocês nas mãos do Fabinho. Ele é o dono da academia e um excelente personal. Vocês estarão em ótimas mãos. Ei, Fabinho!

 

Lou voltou os olhos para a direita. Um cara na faixa dos trinta anos, músculos à vista, bronzeado de sol e olhos verdes vistos à distância, sorriu para elas. De longe, Lourdes percebeu os dentes bem branquinhos. Então este seria o personal delas?

 

Fabinho se aproximou sempre sorrindo causando sensações diferentes em Angelina, Lourdes e Valentina. Lourdes precisou lembrar a si mesma que estava viúva há poucos dias e não poderia demonstrar nenhum sinal de excitação para não pegar mal.

 

― Fabinho, estas são nossas novas alunas. Bom treino!

 

A moça foi embora e deixou as três frente a Fabinho. Além de gostoso, ele também era fofo e cheiroso.

 

― Gurias, que prazer recebê-las aqui em minha academia. Vou orientar vocês a partir de agora, tudo bem?

― Tudo ótimo – Angelina respondeu, alvoroçada.

― Estou ansiosa – declarou Valentina.

 

Fabinho olhou, então, para Lourdes, esperando alguma manifestação.

 

― Ah... eu também.

― Perfeito. Vamos lá.

 

O trio ficou cerca de uma hora na academia. Angelina ria de todas as gracinhas que Fabinho dizia. Lourdes, em dado momento, já nem escutava suas orientações. Não conseguia afastar os olhos do volume da bermuda dele. De que jeito o treino dela iria render com aquela visão... incrível? A única que parecia levar a coisa a sério era Valentina. Na saída da academia, já na rua, a jovem reclamou:

 

― Acho que vocês deveriam ter se focado mais no treino. Não sei como o Fabinho não percebeu os olhares libidinosos de vocês duas. Que vergonha.

 

 Lourdes se ofendeu.

 

― De jeito nenhum eu olhei para aquele homem de outra maneira que não fosse a relação professor-aluno. Aliás, é um excelente professor. Amanhã estou de volta.

― Também o tratei normalmente – salientou Angelina. ― Mas não tenho culpa que ele usa uma bermuda colada. E não sou cega.

 

Valentina preferiu não esticar a conversa por conta dos músculos doloridos. Mais tarde, já em casa, Lourdes se atirou no sofá e esticou as pernas, gemendo. E comentou:

 

― Valen, você não achou o Fabinho parecido com alguém? Ele me lembra uma pessoa. Só não sei quem é.

― Então... agora que você falou... Me parece que sim. Quem será, tia?

― Não faço a menor ideia. A única coisa que posso afirmar é que amanhã eu serei a primeira a chegar.

 

... continua