domingo, 14 de novembro de 2021

A COISA

 



— Amor... Que barulho é este?

Álvaro levantou a cabeça perdido debaixo da camisola sexy da esposa. Não, ele não queria perder a concentração. Talvez fosse só o vento lá fora ao redor daquele chalé escondido na serra.

— Não é nada, benzinho. Relaxa.

Tatiane bem que tentou. Sentiu a língua do marido entre suas pernas e fechou os olhos. Ah, estava tão gostoso... Mas havia algo do lado de fora do chalé que não a deixava desfrutar daqueles momentos com Álvaro.

De repente, o ruído esquisito aumentou e cessou quase no mesmo instante. Tatiane sentou na cama, se desvencilhou do marido e apontou um dedo trêmulo para o lado de fora do chalé.

— Amor, tem alguma coisa rondando a casa.

Álvaro suspirou. Aquela viagem havia sido planejada há um mês. A vida atribulada dos dois, cheia de compromissos profissionais havia esfriado um pouco a relação. O final de semana na serra era muito esperado por ambos. E agora... um ruído qualquer, muito provável que fosse o vento, perturbava a esposa.

Será que Tati não queria transar e inventara uma desculpa ridícula daquelas?

— Tudo bem – Álvaro levantou de um salto. Iria resolver o problema, se é que havia algum, e voltaria para terminar o que tinha começado. — Eu não demoro.

O homem deu um rápido beijo em Tati e desapareceu porta afora. Ela se aconchegou no cobertor e esperou o marido, tensa. O coração, acelerado, não era por causa do sexo quente interrompido pelo meio.

Um grito, praticamente um urro, menos de um minuto depois, fez Tati se encolher. Ela olhou atarantada em direção à porta esperando que Álvaro voltasse.

Mas... o grito era dele!

— Álvaro!

Tatiane jogou o cobertor quentinho para o lado e saiu da cama sem se lembrar de pegar um agasalho. De camisola, sentiu o vento rodopiar ao seu redor enquanto atravessava a sala. O silêncio dominava o lugar.

— Álvaro – gritou ela de novo. Não houve resposta.

O coração de Tati apertou. Talvez fosse uma brincadeira dele. O marido era de pregar peças, dar sustos, coisinhas que a irritavam muito. Por alguns instantes ela se convenceu que era aquilo mesmo. Mais uma brincadeira infeliz de Álvaro.

Tati abriu a porta do chalé. O vento a atingiu em cheio, frio, porém ela não deu muita importância.

— Amor! Onde você está?

Nenhuma resposta. Tati, apesar do frio que congelava sua pele, atravessou a varanda. O chalé ficava no meio do nada, alugado para justamente o casal passar momentos íntimos e privados. Agora, contudo, Tatiane se sentia arrependida de não haver nenhum vizinho por perto. Com as pernas trêmulas, de frio e medo, ela deu a volta na casa, sentindo a relva úmida lhe gelar os pés. O vento fazia barulho e aquilo a irritava. Os nervos começavam a ficar a flor da pele. Um barulho no bosque ao redor lhe arrepiou os cabelos. O mesmo som. Passos. Um uivo. Não era... humano.

Ela pensou seriamente em voltar para casa, pegar o celular e tentar chamar a polícia. Depois lembrou que não havia sinal naquele maldito lugar e, se Álvaro não aparecesse, significava que ela estava completamente sozinha. Mesmo assim, Tati foi parar na piscina, atrás da casa.

E deu um grito que ecoou pelo espaço.

 

*

 

O corpo de Álvaro boiava na piscina. A água, escura pelo sangue. O pescoço do homem estava aberto e seus olhos, arregalados, fitavam o céu estrelado. As pernas de Tati dobraram e ela quase caiu. Contudo, não teve tempo de sequer de desmaiar ou chorar sua dor. O som dos passos e galhos quebrando aumentou de forma considerável.

A única alternativa possível era fugir. E foi o que ela fez. Tati deu meia volta e correu até o portão. Dali eram cinco quilômetros por uma estradinha de terra até chegar a uma rodovia. Depois mais quinze minutos de carro até a cidade mais próxima. Ou seja, Tati sabia estar em maus lençóis. Abriu o portão com um puxão e machucou as mãos. Nem se deu conta que os dedos sangravam. A estradinha estava mal iluminada pelas estrelas, agora encobertas por uma nuvem infeliz. Não tinha coragem de olhar para trás. Passos pesados a alguma distância eram possíveis ouvir. Tati corria o mais que podia, contudo sabia ser um alvo fácil. A coisa que assassinara seu marido parecia estar prestes a terminar o serviço com ela própria. Restou entrar bosque adentro, se embrenhar pelo meio da mata para, quem sabe, despistar a coisa.

Sim, porque não era humano quem quase decapitou Álvaro. Só podia ser um monstro que já tinha escolhido quem seria sua próxima vítima.

Porém, entrar no bosque para se esconder da coisa logo não se mostrou uma ideia tão boa assim. Aliás, para aquele caso não existiam boas soluções. Enquanto corria, atarantada, com galhos batendo no rosto e tropeçando nas raízes das árvores imensas, Tatiane se deu conta que a coisa deveria muito bem conhecer todos aqueles caminhos, trilhas e esconderijos dali. Portanto, não adiantaria de nada se embrenhar pela mata escura. A coisa logo a encontraria. Tati continuou correndo, caindo e se levantando. Decidiu que lutaria até o fim pela sua sobrevivência. Era isso que Álvaro esperava dela.

Os passos atrás de Tati aumentaram de intensidade. Um ronco, uma coisa bufando, não parecia estar tão distante assim. Cada passo seu era um castigo para os pés nus. Galhos quebravam próximo dela, a respiração era forte daquilo que a perseguia. Tati já não tinha força para gritar (não adiantaria nada, ela sabia), e o ar lhe faltava. Cada vez que se enfiava mata adentro sabia que suas chances de sair viva diminuíam. Mas qual a alternativa? Parar? Esperar a coisa lhe comer viva?

Não. Apesar das dores nos pés, do rosto arranhado pelos galhos e do peito arfante, Tati seguiu correndo como se tivesse asas nos pés. Até que tropeçou numa raiz grossa e caiu no chão, rolando duas vezes.

Não teve tempo de sentir mais dor. Mas, sem conseguir ficar de pé, ligeiramente estonteada, Tati andou de quatro por alguns metros. Não tinha forças para levantar. A coisa se aproximou a ponto de ela sentir um hálito quente bem perto da sua orelha.

O pânico se instalou de vez. Tati se voltou bruscamente e com os olhos e o punho da mão fechados, acertou alguma coisa, algo duro que, em seguida, tombou. Tati abriu os olhos, já recuando, sentada no chão. Um homem de cabelos louros, aparência simples e jovem, a encarava com os olhos arregalados, massageando a testa machucada.

— Quem é você? – finalmente Tati conseguiu articular as palavras. — Foi você quem matou meu marido?

O cara ficou de pé. Era franzino e com ar perdido. Não teria força para dar um empurrão em Álvaro, que havia sido um homem forte. Não. Definitivamente, aquele rapaz não era a coisa.

Ou era?

— Venha, moça – ele estendeu uma das mãos calejada pelo trabalho duro. O som dos passos trepidantes havia passado. O bosque, então, mergulhara num estranho silêncio. — Venha comigo. Prometo que estará a salvo a partir de agora.

... CONTINUA...


sábado, 6 de novembro de 2021

JUVENAL, O GATO






Dia de sol, brisa fresca. Preguiça. Tédio. Bocejos. Juvenal me olhou com cara de enfado quando peguei a coleirinha azul e balancei na frente dele.

— Chega de palhaçada, Juve. Vamos passear, você precisa emagrecer.

O olhar do meu gato fez com que eu me sentisse um humano inferior. Não que isto me chocasse. Na verdade, eu já estava bem acostumado com aquele ar de superioridade do Juvenal. Típico.

Coloquei, meio que à força, a coleira no pescoço do meu gato preto e rebelde, e abri a porta de casa. Seria só um passeiozinho. Não entendi porque o Juvenal mordeu minha canela quando eu o coloquei no chão do jardim. 

Juvenal sempre foi temperamental.

Começamos nossa lenta caminhada a lugar nenhum. Não havia ninguém na rua ou algum cachorro que pudesse desafiar o Juve. Quer dizer, se algum cachorro ousasse avançar no meu gato, o resultado seriam arranhões e rosnados. Muito corajoso o Juvenal. Eu, nem tanto.

Eis que lá na esquina dobrou ela. A Grazi. A garota mais bonita da rua. A mina que eu era apaixonado platonicamente desde a minha adolescência. Óbvio que a Grazi nunca olhou para a minha cara. Bem, isso nunca me impediu de flertar com minha musa, ainda que o flerte fosse unilateral. De qualquer forma, o sangue correu mais rápido pelas minhas veias quando me deparei com a Grazi vindo pela rua com aquela microssaia jeans e blusinha de alcinha. O cabelo loiro descia ondulado pelas costas e, puxa... Grazi estava linda.

Ela não me viu. Pousou os olhos no felino e soltou uma exclamação de prazer. Um gato! Se havia algum humano por ali, juro que Grazi sequer reparou. Ela se aproximou, quase saltitante, e se agachou praticamente aos meus pés. Soltou um "boa tarde, coisinha mimosa" ainda sem olhar para mim, encantada com o Juvenal.

Meu gato tinha bom gosto. Puxou ao papai. Quando sentiu as mãos macias dela percorrendo o seu pelo negro, se atirou no chão de barriga pra cima e soltou um miado. Morri de inveja do Juve. Eu queria falar alguma coisa mas, simplesmente, não tinha assunto. Mas o Juvenal tinha, miando para Grazi, aparentemente, encantado.

— Quanta carência! - exclamou ela.

— Ah, estou carente mesmo - concluí, feliz por, enfim, conseguir entabular um papo.

Grazi voltou seus lindos olhos verdes para mim. 

— Estou falando do gatinho.

Devo ter ficado vermelho.

— Exatamente. Ele é muito carente. 

— Ah... - fez Grazi e voltou seus olhos e sua atenção para o Juvenal.

— Você tem gatos? - perguntei, desesperado para falar alguma coisa útil. 

— Aham - a resposta saiu solta. O Juvenal era o centro das atenções. Eu era um mero humano sem graça, quase invisível.

— Qual seu nome? - ela perguntou.

Finalmente.

— Eduardo.

Ela olhou de novo para mim e ficou em pé.

— O nome do gato é Eduardo?

Talvez ainda eu estivesse vermelho do mico anterior.

— Você também pode chamá-lo de Dudu.

— Certo. Belo nome. 

Ela olhou para baixo, se agachou e fez mais um carinho na cabecinha feliz do... Eduardo.

— Até outra hora, gatinho lindo - Grazi então me olhou, fez um sinal com a cabeça e foi embora.

Eu fiquei no mesmo lugar pensando se deveria chegar em casa e anunciar para minha família que a partir daquele meu momento meu nome passava a ser Juvenal.

Mas podem me chamar de Ju. Fica mais carinhoso.