sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

A SUICIDA


                Larissa pegou a mão de Mel e saíram escondidas da aula de Educação Física. Faltava pouco para terminar o turno e já anoitecia. As duas odiavam fazer qualquer tipo de exercício.

                Mel quase caiu no corredor deserto da escola quando ambas fizeram a curva correndo. Lá no fundo ficavam os banheiros.

                — Preciso retocar o batom – Larissa riu do tombo que Mel quase levou. — O Rodriguinho já deve estar lá na frente.

                — Não era mais fácil você arrumar um namorado da mesma escola?

                — Tenho culpa se o cara mais gato do Brasil gosta de mim e estuda do outro lado da cidade? Ah, amiga, ele é um amor...

                Mel olhou para frente. Já estavam perto dos banheiros, mas, aparentemente, não havia mais ninguém por ali.

                — Nossa – comentou Larissa. — Cadê todo mundo?

                — Estão matando aula. Tipo nós.

                — Estranho.

                O banheiro feminino estava vazio. Mel empurrou a porta com um pé e as duas amigas entraram rindo, despreocupadas. Uma menina de cabelos loiros estava agachada em um dos cantos. Vestia uma roupa branca, solta no corpo e escondia o rosto entre os joelhos. Larissa puxou Mel para trás assim que se deparou com a moça.

                — Mel, olha...

                Mel estacou no mesmo instante, assustada. Nenhuma das três garotas falou qualquer coisa, contudo era palpável a tensão que pairava no ar. Larissa olhou para Mel e perguntou, baixinho:

                — Quem é?

                — Sei lá – a resposta foi no mesmo tom.

                A garota desconhecida se mexeu. Primeiro os pés, depois as mãos. Lari e Mel sequer respiravam. Assombradas, viram quando a garota levantou a cabeça, devagar, e as encarou. O rosto pálido ao extremo, os olhos fundos, uma expressão de tristeza imensa.

                Mel foi a primeira a dar o berro:

                — É a Clau! A suicida do banheiro.

                Na desesperada tentativa de sair do lugar o mais rápido possível, as duas amigas se embolaram e caíram no chão. Mel torceu o pé e Larissa, em pânico, tentou levantar a amiga.

                — Depressa, Mel!

                Clau ficou em pé sem nunca tirar os olhos das duas. Mel berrou, desesperada, se agarrando nas pernas de Larissa. As luzes do banheiro começaram a piscar.

                — Ai, meu Deus! – Larissa gemeu. — É a Clau mesmo! Aquela que se matou enforcada por causa do Leandro!

                Clau deu dois passos para frente. Uma porta bateu ao longe. Larissa envolveu Mel pela cintura e a arrastou para o lado de fora do banheiro. As luzes do corredor piscavam sem parar. Um vento soprou vindo do nada.

                — Ela vai nos matar, Lari!

                Mel pulava em um pé só agarrada na amiga, ambas já no corredor. Nenhuma tinha coragem de olhar para trás.

                — Será que era a Clau? – a voz de Larissa tremeu.

                — Claro que era. Eu me lembro dela antes de...

                Mel preferiu não completar a frase.

                — Que droga – Larissa praguejou. — Não tem ninguém nas salas. Ninguém para nos salvar. Parece que não vamos nunca alcançar o pátio.

                — E se ela matou todo mundo?

                Larissa se perturbou com a pergunta de Mel e tropeçou. Desequilibrada, caiu no chão levando junto a amiga. Lá no fundo do corredor, na porta do banheiro, Clau as observava. Mel se moveu sentada no chão recuando alguns centímetros.

                — Ela vai nos alcançar. Nunca mais vou conseguir me levantar daqui.

                Larissa ficou em pé e toda ela tremia. Esticou a mão para a amiga.

                — Isto não pode estar acontecendo. Vem, Mel, fica em pé de uma vez.

                — O que vocês duas estão fazendo aqui?

                A diretora da escola estava parada a poucos metros dela. Mel e Larissa estremeceram. Seria possível que a mulher não estivesse enxergando Clau no fundo do corredor?

                — Diretora, só fomos ao banheiro – Mel tentou se desculpar.

                — E o que você está fazendo no chão?

                Mel balbuciou:

                — Torci o pé fugindo da Clau.

                — De quem?

                A diretora colocou as mãos na cintura. Sua expressão ficou ainda pior.

                — Da Clau – Larissa suspirou. Sem olhar para trás, com medo, apontou na direção dos banheiros.

                Com os olhos, a diretora seguiu o dedo de Larissa e olhou para o fundo do corredor.

                — Você pensa que sou alguma idiota?

                Mel segurou o ar. Não sabia o que era pior. Enfrentar a diretora ou o fantasma de uma menina suicida.

                — Não, por favor!

                — Vocês falaram... Clau?

                Larissa respirou fundo e olhou para trás. Não havia ninguém defronte a porta dos banheiros. Tudo parecia muito normal.

                — Eu posso explicar...

                —Vocês não deviam estar na aula de Educação Física?

                — Eu torci o pé – argumentou Mel com um fiapo de voz.

                — Vou chamar o monitor para me ajudar com vocês duas. Já faz três anos que esta menina morreu. Esqueçam.

                A mulher se afastou. Lari e Mel permaneceram no mesmo lugar, quase sem se mexerem.

                — Lari, olha pra trás.

                — Eu? Não tenho coragem.

                — E se nós estivermos imaginando coisas?

                Devagar, as duas garotas voltaram o pescoço na direção do banheiro. Clau continuava lá.

*

                — E por que vocês acham que o Leandro vai dar a mínima para isto? Eles nem estavam mais juntos.

                Mel olhou de canto para Larissa. Ambas estavam na praça de alimentação de um shopping sentadas frente à Fabi, irmã do ex-namorado da Clau.

                — Ora, amiga – Mel controlou a vontade de acertar um soco naquela garota pedante. — Todo mundo sabe que a Clau fez o que fez por ter visto seu irmão se agarrando com a Verônica.

                — A culpa nunca foi dele – Fabi foi dura. — A Clau não teve estrutura para suportar vê-lo com outra e resolveu se matar. Bem, acho que ele deveria ter sido mais discreto.

                — Mas não foi – Larissa devolveu no mesmo tom. — Agora Clau fica vagando pela escola. Uma alma perdida.

                — Para não dizer penada – arrematou Mel.

                Fabi tomou um gole do suco de maracujá e encarou as duas amigas, curiosa.

                — Então é sério que a Clau vagueia pela escola? Quando eu saí de lá já ouvia essa história. Mas nunca acreditei que fosse real.

                — Nem nós – Mel se arrepiou só de lembrar a cena pavorosa. — O fato é que nós a vimos.

                — Vocês não estão delirando? Vocês disseram que a Diretora não viu nada.

                — Na verdade a Clau só aparece para quem quer – Larissa olhou para Fabi espantada com tão pouca empatia. — Talvez pense que nós podemos ajudar.

                — Não sabia que vocês eram íntimas da louca da Clau.

                — E não somos – Mel suspirou sem paciência.

                — Então por que ela surgiu para vocês? Meninas, vocês não tinham cheirado nada, não é?

                Larissa segurou firme o braço cheio de pulseiras da Fabi.

                — O que estamos contando é a mais pura verdade.

                Fabi puxou o pulso com alguma brusquidão.

                — Vocês querem que eu faça exatamente o quê?

                — Peça para seu irmão vir falar conosco – Mel encarou Fabi. — Ele poderá nos entender melhor do que você.

*

                Apesar de as meninas duvidarem que Leandro fosse dar alguma importância a elas, o rapaz ligou naquela mesma noite para Mel. Rápida, ela colocou o telefone no viva-voz para que Lari pudesse escutar também.

                — Oi, Mel – a voz dele não estava das melhores. — Minha irmã disse que vocês precisam falar comigo.

                — Olá, Leandro. Maravilha você ter ligado. Achei que você não gostaria de tocar no... assunto.

                — Certo. Qual é o problema?

                Mel e Larissa se entreolharam. Era nítido que Leandro não estava disposto a se prolongar.

                — Nós, eu e a Lari, vimos a Clau anteontem.

                Silêncio do outro lado da linha. Depois de alguns segundos ele perguntou:

                — Viram quem?

                — A Clau.

                — Ela morreu.

                — Sim. Nós sabemos disso. Mas… como eu disse, ela apareceu para nós.

                Foi ouvido um suspiro de impaciência e Mel achou que ele fosse desligar.

                — Vai começar esta história de novo? Já estou farto disso. Cansei de ouvir relatos que Clau anda circulando por aí.

                — Mais precisamente no banheiro feminino da escola, Leandro. Foi assustador o que eu e a Lari presenciamos.

                — Muito bem. E vocês querem que eu faça o quê? Acenda uma vela para Clau?

                Larissa abriu a boca, espantada. Não podia acreditar que Leandro fosse tão grosso.

                — Escute aqui, Leandro… – começou Mel.

                — Eu não sei se a Clau está vagando por aí. Não acredito nesse tipo de coisa. Sinto muito que tudo tenha acontecido daquela forma, mas não tenho culpa – novamente ele perguntou. — O que vocês querem que eu faça?

                — Achamos que seria interessante você ir até a escola. Talvez ela precise falar com você.

                Leandro riu um pouco irritado.

                — Não acredito. Vocês acham mesmo que eu vou conseguir algum contato sobrenatural com ela?

                — Ora, se nós conseguimos...

                — Tudo bem. Eu vou até a escola para acabar com esta palhaçada de uma vez. Quando posso ir?

*

                Uma semana depois, durante a mesma aula de educação física. As garotas escapuliram durante alguns exercícios e foram ao encontro de Leandro. Ele estava frente à biblioteca. Acompanhado.

                De longe, Mel avistou os cabelos ruivos de Verônica. E declarou:

                — Precisava ele trazer o motivo da Clau não descansar em paz?

                Verônica era uma jovem alta e bonita. Formavam um belo casal. Quando pararam em frente aos dois, Mel se sentiu uma idiota. E se a Clau não aparecesse?

                — Então, meninas – Leandro parecia constrangido. — Vamos brincar de caça-fantasmas?

                Nenhuma das duas riu. Verônica tentou emendar:

                — Leandro me contou que a Clau apareceu para vocês... É sério isto?

                — Muito sério – Mel foi firme. — Estamos preocupadas porque o fato da Clau estar vagando por aqui é sinal que sua alma não descansou até hoje.

                — Bem, a culpa não é minha – declarou Verônica. — Aliás, sinto muito por ela. Eu nem sabia que a Clau e Leandro tinham namorado quando ficamos juntos pela primeira vez.

                — Certo. Mas vamos ao que interessa – Larissa interrompeu a ladainha. — Temos que aproveitar que as turmas estão na aula de Educação Física no pátio.

                O corredor estava vazio. Ao longe, a porta dos banheiros se destacava. Leandro perguntou:

                — Foi lá que vocês a viram? – ele fez um sinal com a cabeça.

                — Exatamente – Mel deu um cutucão nele. — Vamos logo antes que a Diretora apareça e estrague tudo.

                Os quatro foram em direção ao banheiro, em silêncio. Verônica apertou firme a mão do namorado. Aquela era uma situação tão esquisita. Desde que começaram a namorar ela era bombardeada com indiretas, mensagens cifradas e pessoas falando abertamente sobre o suicídio de Clau. Era duro de aguentar. E agora as duas garotas vinham com uma história bizarra da Clau no banheiro. Os boatos de que a jovem circulava pela escola eram inúmeros, mas nunca haviam ido tão longe.

                À medida que se aproximavam, contudo, Verônica começou a sentir um mal-estar. As mãos gelaram e um suor frio escorreu pelo meio das costas. O estômago doeu e Verônica sentiu vontade de parar onde estava.

                Leandro não percebeu o desconforto da namorada e seguiu em frente, os olhos fixos na porta. Não havia acreditado nem um pouco nas meninas, mas elas foram tão insistentes que ele resolveu topar a parada para encerrar o assunto. Mas... por que à medida que se aproximava sentia os pelos da nuca ficarem em pé? A porta do banheiro estava cada vez mais perto. As luzes estavam apagadas. Olhou de soslaio para Lari e Mel. Pálidas, e de mãos dadas, pareciam à beira de um surto. Não se ouvia barulho nenhum, nem mesmo as vozes dos alunos fazendo educação física lá fora.

                Leandro parou frente à porta e as três meninas logo atrás dele. Ninguém falou e, como não queria passar por medroso, comentou:

                — No meu tempo as luzes do banheiro ficavam acesas.

                Respirando fundo, deu um passo à frente e achou o interruptor sem entrar no banheiro. Iluminada a peça, Leandro se encorajou. Deu um passo para o interior e fez uma rápida inspeção com o olhar.

                Vazio e inofensivo. Ele sentiu vontade de rir e se virou para as meninas.

                — Então, garotas. Não tem nada aqui.

                Verônica, Lari e Mel arregalaram os olhos e, sem perceber, se juntaram umas às outras. Leandro prosseguiu:

                — Não tem fantasma nenhum.

                Verônica recuou um passo, tão pálida que Leandro achou que ela fosse morrer. Caiu sentada no chão com a boca aberta querendo gritar, mas sem sair um único som. Larissa se grudou mais ainda em Mel e ambas deram um grito que reverberou na escola inteira. Leandro, então, se voltou, brusco para trás. Clau, com sua expressão fantasmagórica, encarava-o de muito perto. Leandro pensou em gritar, mas aí já era tarde demais. As três meninas testemunharam quando a porta do banheiro se fechou com um estrondo. Larissa se voltou e tentou puxar Verônica pela manga da blusa.

                — Levanta, Verônica! Temos que sair daqui!

                — Leandro – gemeu ela ao mesmo tempo em que uma vidraça do corredor explodiu. — Alguém tem que tirá-lo do banheiro!

                Lari, Mel e Verônica saíram em disparada, tropeçando e se batendo umas nas outras. A barulheira atraiu dois monitores no início do corredor. A gritaria era grande. Verônica caiu de novo.

                — Vocês precisam ajudar o Leandro! – berrou Mel. — A Clau o prendeu lá dentro!

                — Clau? – um deles perguntou. — A suicida do banheiro?

                Os homens se precipitaram em direção ao local enquanto as meninas se amontoaram em uma das paredes. Aos poucos gente começou a chegar. Professores, alunos, diretora. Todos parados no meio do corredor assistindo os monitores tentar arrombar a porta. O único som que se ouvia era das batidas violentas. A diretora estava pálida e Verônica prestes a desmaiar. De repente, lá pela décima pedalada, a porta voou para trás. Alguém gritou.

                Dentro do banheiro somente a escuridão. A diretora caminhou, em silêncio, até os monitores. Eles pareciam consternados. Tensa, a mulher olhou para dentro. Leandro, deitado no chão frio, fitava o espaço com os olhos arregalados.

*

                Um dia depois o laudo do médico legista atestou enfarte fulminante. E Clau nunca mais apareceu na escola.