segunda-feira, 27 de abril de 2020

DO OUTRO LADO DO MURO (conto de terror)







Eu escutei o latido de um cachorrinho do outro lado do muro. Aquilo estava cada vez mais frequente agora. Desde que aquela família estranha se mudou para a casa ao lado da minha, coisas bizarras começaram a acontecer. Cantorias sinistras depois da meia noite, uma criança pequena chorando quase sem pausas e o latido insistente do tal cachorrinho. Parecia um filhote e pelo jeito que gania, dava a impressão de estar sofrendo.

Minha mãe me proibira com todas as letras de chegar perto do muro que separava as duas casas. Mas naquela noite não suportei a angústia. Eu estava sozinha em casa e algo muito errado estava ocorrendo do outro lado do muro.

Peguei uma escada e sem pensar muito (para não desistir), encostei-a na parede e subi degrau por degrau. Quando minha cabeça ultrapassou a altura do muro consegui visualizar o que havia no pátio do vizinho. Meu coração batia tanto que tive a impressão que teria um ataque cardíaco.

A princípio, apesar da luz fraca, parecia tudo normal. No fundo, próximo da porta, um cachorrinho preto me olhava, assustado. Amarrado pelo pescoço por uma corda grosseira, o animal parecia acuado e triste. E talvez, machucado. Eu não podia deixar aquilo permanecer. Me armando da pouca coragem que tinha, passei a perna sobre o muro e no segundo seguinte já estava dentro do outro pátio. Não fiz nenhum barulho enquanto me aproximava do cão. Ele recuou um pouco, mas logo percebeu que eu não iria machucá-lo.

O nó estava forte. Praguejei, respirei fundo para me acalmar e tentei de novo. Uma sombra atrás de mim, no muro, fez com que minhas pernas ficassem mais bambas do que já estavam. Me voltei, tensa, e deparei-me com um gato preto. Seus olhos amarelos e ferozes me disseram que eu não era para estar naquele lugar. Contudo, eu não tinha como sair. O gato bloqueava minha passagem. Parecia estar esperando que eu subisse no muro para me atacar.

O cachorrinho ganiu de novo e quando tentei soltar o nó mais uma vez, a porta da casa se abriu. Olhei para cima sem acreditar na minha má sorte. A porta lentamente foi abrindo e pensei que era melhor para mim fugir. Levantei tão rápido que, em pânico, tropecei nos meus próprios pés e caí no chão em um baque surdo. O gato saltou do muro e parou ao meu lado, espreitando-me. A porta agora estava aberta totalmente e a escuridão não permitia que eu visse quem estava ali. Um vulto, um véu, algo se movia através da brisa leve que soprava. Não dava para saber se era homem ou mulher, jovem ou velho. Eu precisava fazer alguma coisa. Talvez fugir fosse pior.

— Boa noite – murmurei.

Não houve resposta. A luz acendeu e num primeiro momento ela me cegou. Não havia ainda me habituado com a claridade quando escutei uma voz aveludada e simpática:

— Olá. Quem é você?

Uma moça bonita, de branco e longos cabelos negros, me fitava com olhos brilhantes. Meu medo se dissipou no mesmo instante. Ela não parecia nem um pouco ameaçadora. Levantei esfregando as mãos nas minhas calças jeans.

— Sou a Luciana, a vizinha da casa ao lado. Eu... fiquei preocupada com os latidos do cachorrinho.

 A moça sorriu parecendo compreender a situação perfeitamente.

— Ah, ela é muito sensível. Late por tudo. Muito prazer em conhecê-la. Você não quer entrar? Venha tomar um chazinho comigo e minha família.

Uau, eu não esperava receber aquele convite. Tudo parecia normal ali e, de repente, me vi ansiosa para saber quem eram meus novos vizinhos. Teria muitas novidades para contar quando meus pais retornassem.

— Eu adoraria.

Ela fez um gesto para que eu me aproximasse e chegou para o lado a fim de que eu entrasse na casa. Me vi numa cozinha antiga e com facas afiadíssimas expostas sobre uma mesa grande. Senti um arrepio. Mais para o canto, no chão, um saco preto e imenso parecia estar cheio.

Cheio de quê?

A porta que dava para o pátio se fechou com um barulho sinistro. Nada fazia mais sentido. Olhei para trás. A moça simpática sorria para mim com uma corda na mão.


terça-feira, 21 de abril de 2020

AS MELHORES AMIGAS (Conto infantil)





Tina e Tônia eram as melhores amigas. Tina adorava seu vestido de fita cor do céu. Tônia não tirava seu vestido de chita cor-de-rosa. Um dia Tina derrubou feijão no vestido preferido de Tônia. A amiga ficou tão triste que Tina decidiu costurar um vestido ainda mais bonito para Tônia. Ele era cheio de florezinhas e borboletas e toda vez que Tônia o vestia, ela imaginava estar em um jardim encantado passeando com sua melhor amiga. E Tina, com seu vestido cor de céu, levava Tônia para voar com os beija-flores.

Porque quando a gente é criança os sonhos andam de mãos dadas com a gente.

sábado, 11 de abril de 2020

O BELO







Mas ele era bonito, sabe? Tinha pose, estilo, um olho preto misterioso. Eu gostava de olhar para ele, embora ele nem soubesse da minha existência. Não que eu me importasse. Na verdade, eu o achava muita farinha pro meu saco. Imagina se um homem daqueles iria se interessar por mim... Eu me contentava com pouco naquela época. O “pouco”, no caso, era eu ficar observando o cara meio que escondido, analisando cada movimento seu, o jeito que caminhava, cruzava as pernas, até o tênis que ele usava me dava arrepio. Tudo nele era bonito. Eu sabia que ele nunca iria olhar para mim com algum interesse.

Não que eu fosse feia. Não! Na verdade, eu bem bonitinha, graciosa, não tinha problema para encontrar namorado. O problema é que fui me encantar com alguém que, como minha mãe dizia, era de um nível social diferente do meu. Para ele, eu sei, eu era uma pobretona. Que andava de ônibus. Que quando ficava doente tinha que ir parar na UPA e não na clínica particular top dos Jardins. Eu era simples. Ele, grandão. Não, gente. Eu tinha pé no chão. Ele nunca iria querer nada comigo.

Aconteceu, então. Os nossos destinos se cruzaram. Foi uma coisa muito louca e, ao mesmo tempo, muito estúpida. Quando me dei conta ele estava praticamente em cima de mim, passadas fortes, óculos de grife escuros, um deus. Eu não tive nem tempo de perder o fôlego. Só ouvi aquela voz metálica dizendo “ponha no lixo pra mim”. Levei alguns segundos para me dar conta que ele estava se dirigindo a mim. Aquela mãozona morena que tanto eu admirava colocou nas minhas próprias mãos uma latinha de cerveja amassada. E foi embora. Não olhou para trás. Não agradeceu. Fiquei olhando para o lixo que ele deixara comigo e tive uma vontade louca de atirar de volta nas costas largas dele.

Pensei em abaixar a cabeça e recomeçar meu trabalho. Mas antes que eu fizesse isso, levantei o dedo do meio num gesto afrontoso.


Nunca mais, seu cretino.

terça-feira, 7 de abril de 2020

MOCORONGA VÍRUS - Parte 2 final





                                                                                4



Dalva não era propriamente uma mulher bonita, mas sabia ainda como conquistar um homem. Já havia passado dos cinquenta anos, contudo o corpo se mantinha em forma à base de muita ginastica. Quando a prima Maricota telefonou pedindo ajuda para sair do cativeiro ela não pensou duas vezes em libertá-la. E se o policial estivesse fazendo campana não teria problema algum. Ela poderia dar um jeitinho de fazer com que ele relaxasse na guarda.

Sem medo pulou as barricadas que o prefeito pusera na entrada da cidade e caminhou, resoluta, para o centro da cidade. Dalva conhecia Santa Luzia, já visitara a prima algumas vezes e sabia muito bem onde ficava a delegacia. Esgueirando-se pelas sombras, ela não custou muito a avistar um policial jovem e bonito frente ao prédio do lugar. Dalva se escondeu atrás de uma árvore para observá-lo melhor. O homem estava com sono e, com certeza, seus reflexos, mais lentos. Uma pena que Maricota estivesse naquela situação, pois seria um prazer conhecer mais de perto o belo agente da lei. Bem, isto teria que ficar para outro dia, para depois da pandemia do mocoronga vírus passar. Primeiro precisava tirar a prima e o amigo dela do confinamento e fugir dali antes que restasse presa também.

Foi depois de um bocejo prolongado que Josias percebeu que a árvore se mexia. Ele piscou algumas vezes até cair em si e ver que, na verdade, uma mulher de cabelo oxigenado, de calça justa e tênis cor-de-rosa se escondia atrás de uma árvore. Ele suspirou. O que mais faltava acontecer em Santa Luzia naquela noite? Ele pegou a espingarda e apontou para a figura caminhando firme na sua direção.

— Levante as mãos!

Josias falou em tom baixo e firme. Não era sua intenção acordar a cidade inteira naquela longa madrugada que não terminava nunca.

A mulher saiu detrás da árvore com um sorriso estampado no rosto e se movendo como se fosse uma serpente. Em um primeiro momento, Josias pensou que Dalva fosse um travesti. Realmente, aquela noite estava bem esquisita.

— Não atire, meu amor. Não sou uma assassina.

Josias nunca havia visto a mulher na sua vida. Sim, era uma mulher. Mas o que ela fazia circulando por Santa Luzia em alta madrugada?

— De onde você é?

— Estou de passagem – respondeu ela se aproximando devagar.

— Passagem? De que jeito? As entradas da cidade estão bloqueadas.

Dalva parou frente a ele guardando uma certa distância. A espingarda ainda estava apontada para ela sem muita convicção agora.

— Sou uma fada – Dalva fez uma pose graciosa. — Posso qualquer coisa.

— Meu Deus – murmurou Josias. Não sabia dizer se a mulher estava bêbada ou era maluca. — De onde você saiu?

— Já disse, sou uma fada. E vim aqui alegrar sua noite solitária.

Josias baixou a espingarda. Sim, a mulher era doida.

— Olha, só para esclarecer. Não estou triste e tampouco me sentindo sozinho. Volte para onde você veio. Ou vou ter que lhe prender.

— Uau, que loucura! Eu adoraria ser algemada por você.
Dalva sorriu com todos seus dentes branquinhos. Senão fosse a prima presa, ela bem que gostaria de ficar de assunto com o bonito.

— Senhora – Josias apontou para a direção da entrada da cidade. — Não sei como entrou, mas recomendo que se ponha daqui para fora.

— Já que é assim irei embora mesmo – Dalva sacudiu os ombros fingindo-se conformada. — Um dia voltarei para conversarmos mais de perto. Eu sei que é por causa do mocoronga vírus que você não quer falar comigo.

Dalva atirou um beijinho para ele e se virou para ir embora. Deu três passos e desabou no chão.

— Ai!

Josias soltou outro suspiro. Era demais. A mulher massageava o pé que, supostamente, estava torcido. Seu rosto era uma expressão de dor. Josias não podia deixá-la ali.

— Vou ajudar você.

Ele se aproximou de Dalva e se agachou ao lado dela. Esperava, de todo o coração, que a criatura não estivesse contaminada pelo mocoronga.

— Tudo bem. Se apoie em mim – ele ofereceu o braço. — Vou levar você até a delegacia.

Amparada por Josias, Dalva foi pulando num pé só, gemendo de dor, mas adorando o contato físico entre os dois. O homem abriu a porta pesada da delegacia, acendeu a luz e indicou uma cadeira para Dalva.

— Você pode sentar ali mesmo.

— Oh, muito obrigada – ela o encarou com seu sorriso radiante. — Você é tão gentil.

— Não faço mais que minha obrigação.

Foi tão rápido que Josias não teve tempo de se defender. Dalva acertou a cabeça do policial com um cassetete e usou de tanta força que o homem desabou no chão. Chocada com sua própria atitude, ela o observou por alguns segundos. Sabia que quando ele voltasse a si estaria muito encrencada. Afobada, revistou seu bolso até encontrar uma chave que supôs ser a do galpão onde a prima estava. Dalva saiu pelos fundos da delegacia e não demorou muito a encontrar o local onde Maricota e Vanderlei estavam.

— Mari! Mari, sou eu! Você está aí?

Maricota deu um pulo ao ouvir a voz da prima.

— Dalva! Sim, estamos aqui!

Com as mãos trêmulas, Dalva conseguiu abrir a porta. Maricota surgiu branca e aliviada abraçando a prima. Mas não havia tempo para demonstrações de afeto.

— Eu acertei uma cacetada no policial – Dalva pegou a mão da prima puxando-a para fora do galpão. — Se ele acordar estou mais ferrada que vocês dois juntos!

Maricota olhou para Vanderlei que vinha logo atrás dela.

— Não podemos perder tempo, Vanderlei!

Os três saíram da delegacia em silêncio nervoso, caminhando fininho. Josias continuava no chão, gemendo e parecendo prestes a acordar. Assim que ganharam a rua Vanderlei anunciou:

— Vocês vão para um lado e eu vou para outro. Até qualquer dia, Maricota.

Dalva deu um puxão na prima enquanto Vanderlei desaparecia aos pinotes pelas ruas desertas de Santa Luzia.

— Vem, Mari! O policial já vai acordar!

De mãos dadas, as duas primas atravessaram a praça correndo, tensas e rindo de nervosas. Tinham a impressão que a qualquer momento o delegado e os outros policiais iriam brotar do nada para levarem as duas para o xilindró.

— Atchim!

Dalva soltou a mão de Maricota para espirrar.

— Nossa, estou em péssima forma – gemeu Maricota apoiando as duas mãos nos joelhos, arfante.

Foram mais dois espirros na sequência enquanto Maricota aproveitava para recuperar o fôlego. Dalva explicou, fungando:

— O pólen das flores me causa alergia.

Outra vez, mais descansadas, elas se puseram a correr rumo às barricadas. Dalva deixou mais alguns espirros no ar de Santa Luzia ao mesmo tempo que a prima escalava os obstáculos que o prefeito mandara colocar no portal de entrada da cidade. Só ficou aliviada quando se viu dentro do carro da prima.

— Tão cedo eu não volto para cá – suspirou ela meio entristecida.

— Muito menos eu – Dalva acionou a partida do motor. — Pobre do bonitão. Eu gostaria tanto de conhecê-lo melhor...

O carro partiu em disparada. Santa Luzia ficou para trás jogada a sua própria sorte.

O mais forte sobreviveria.

Ou não.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

MOCORONGA VÍRUS - Parte 1






1

Primeiro o prefeito mandou fechar as duas entradas da cidade. Depois o delegado ordenou que o contingente de três policiais fizesse uma ronda todos os dias ao anoitecer para quem estivesse na rua fosse devidamente posto dentro de casa. O motivo? O mocoronga vírus, uma peste que provocava uma sucessão de espirros e uma diarreia incontrolável.

Logo o pavor tomou conta da pequena Santa Luzia. As pessoas tinham medo de sair à rua. As missas foram suspensas e o comércio local começou a atender com as grades fechadas, evitando qualquer contato pessoal. Máscaras de proteção e luvas eram a nova moda entre os habitantes apavorados.

O remédio para diarreia esgotou rapidamente das duas farmácias no município. Ninguém queria ser pego desprevenido. Ainda que não houvesse sido registrado nenhum caso na comunidade e arredores, o medo de se cagar em público era maior que qualquer coisa.

Os namorados não se beijavam mais. Ninguém mais compartilhava o chimarrão. Os cumprimentos afáveis e apertos de mão deixaram de acontecer. Tudo era à distância. O pavor tomou conta daquele pequeno lugar. Tinha gente que até medo de peidar sentia. A situação era caótica.

E havia o Vanderlei, o bêbado de estimação da cidade. Ele vivia numa casinha um pouco afastada do centro de Santa Luzia com seus cachorros. Vander era um bêbado quieto e não se sabia se ele estava a par do que estava ocorrendo. O fato é que o homem circulava, despreocupado, pelas ruas da cidade com sua garrafa de cachaça, feliz na sua bebedeira, sempre com um par de cachorro nos seus calcanhares. De fato, Vanderlei era o cara mais sereno de Santa Luzia. Não estava nem aí para nada. Um vírus? Deixa pra lá.

Mas teve uma vez que Vander burlou o toque de recolher da polícia. Foi em uma noite em que ele estava mais bêbado do que nunca. Aos berros, o homem deu uma volta ao redor do chafariz da praça bebendo cachaça. As pessoas chegaram à janela e algumas pediram que ele fosse para casa. Ninguém queria sair para acalmá-lo com medo do vírus e da polícia (o delegado esbravejou que prenderia quem ousasse estar fora de casa depois que o sol baixasse). Vanderlei ignorou a todos. Quando avistou um dos policiais se aproximando juntamente com o delegado, Vanderlei tirou as calças e defecou bem no meio da praça.

 — Eu peguei o mocoronga vírus! – berrou ele. — Estou pesteado!

E ria. Algumas janelas foram batidas violentamente. O policial e o delegado, que vinham em passo firme, pararam subitamente ao assistirem aquela cena. Não tanto pela nojeira, mas pelo medo do infeliz estar infectado. O policial deu um cutucão no delegado e comentou:

— Ele não está doente coisa nenhuma. É só para afrontar mesmo.

Mas o delegado suava em profusão.

— Eu só não mando prender este vagabundo porque ele pode contaminar toda a delegacia. Vou falar com o prefeito para mandar desinfetar a praça.

No outro dia quando os moradores saíram para seus afazeres encontraram a praça cercada por um cordão de isolamento. De Vander, nem sinal.

2

A Maricota saiu cedo de casa, por volta das oito horas da manhã, para ir até o cemitério levar algumas rosas para pôr no túmulo do finado. Não era por um vírus mixuruca que ela iria ficar em casa confinada como algumas amigas estavam fazendo. Ela precisava sair, respirar ar puro (ou não tão puro assim), cumprimentar as pessoas. Bem, as pessoas não estavam saindo muito para a rua. O prefeito recomendara que era para sair só em caso de necessidade. Bem, o finado estava de aniversário e ele merecia flores. E lá foi Maricota agarrada no seu buquê de rosas. Não tinha medo do mocoronga vírus, muito menos de ficar doente. O bicho não tinha nem chegado perto de Santa Luzia ainda! Que gente medrosa!

Enquanto caminhava segurava de si até o cemitério no ponto mais alto da cidade, Maricota pôde perceber os olhares tortos que recebia dos vizinhos recolhidos nas suas casas e que estavam na janela cuidando da vida alheia. Quase fez uma banana pra aquela gentinha. No cemitério não ficou mais que meia hora. Rezou, deu uma chorada, conversou um pouco com o finado e foi embora. Lembrou que precisava comprar pão e passou na padaria do seu Joca. Havia em torno de cinco pessoas que se mantinham afastadas uma das outras esperando do lado de fora para serem atendidas. Seu Joca, de máscara, atendia pela grade, entregando os produtos por ali, dentro de uma sacola pendurada na ponta de uma taquara. Maricota ficou por ali admirando a bela praça (agora já limpa depois da cagança do Vanderlei), os passarinhos, o céu azul. Ninguém conversava. Pareciam ter medo de abrir a boca e acabar engolindo o mocoronga. A primavera era linda, Maricota pensou ao mesmo tempo que sentiu vontade de espirrar. Maldita rinite, praguejou ela antes de ser sacudida por uma sequência de uns dez espirros. Quando voltou ao normal se surpreendeu ao reparar que os vizinhos estavam a metros de distância dela, todos a observando com ares de espanto e terror. Paralisados. Seu Joca a encarava de olhos arregalados. Aliás, com a máscara, a única coisa que aparecia no rosto do homem eram os óculos de aros grossos. Todo ele era pânico. Maricota levou cinco segundos para se dar conta do que acontecera.

— Gente... – ela teve vontade de rir. — É só uma crise de rinite.    
        
Uma mulher apontou um dedo trêmulo e nervoso para ela, dizendo com uma voz cavernosa:

 — Ela está com a coisa!

— Não, não estou, não – Maricota ainda riu sem se dar conta da gravidade. — É rinite, eu tenho surtos sempre que começa a primavera. Gente, nem me caguei ainda!

Só quem riu foi ela. Ninguém mais. Seu Joca fechou a porta do estabelecimento com um estrondo e se refugiou lá dentro. Do lado de fora alguém sacou o celular e ligou para a polícia. Quem então arregalou os olhos foi Maricota. Oi? Polícia? Então iriam prendê-la? Ou levá-la para algum tipo de confinamento?

 Socorro.

Maricota deu meia volta e saiu correndo do jeito que podia. Ela não tinha mais idade para correr, mas de alguma forma conseguiu se afastar da cidade o bastante para escapar das garras da polícia. No meio do caminho, numa estradinha de terra, suada e com as pernas bambas, deu de cara com o Vanderlei.

 — Vander! – berrou ela se aproximando. Lembrou que o finado dava dinheiro para ele sempre que o bebum pedia. — Me ajuda, por favor! A polícia quer me prender!

 — Por quê? – naquele momento ele não estava tão bêbado assim. — Você cagou na praça também?

 — Não! – Maricota se horrorizou com a pergunta de Vanderlei. — Eu só espirrei.

 — Ah, minha filha – retrucou Vanderlei balançando a cabeça de um lado para o outro. — Você já devia saber que lá na cidade não se pode nem cagar e nem espirrar.

 — Pois é, mas a rinite me atacou. E chamaram a polícia.

 — Olha – Vanderlei cruzou os braços e olhou para ela. — O que você pode fazer é se esconder lá em casa.

— Na sua casa? – Maricota torceu a cara. — Mas lá vai ter lugar para mim? Naquele muquifo?

— Quer ou não quer?

Não que tivesse medo de Vanderlei. Ele sempre fora um pobre diabo inofensivo. Só não sabia o que esperar de um local habitado por um bêbado.

 — Tudo bem – ela decidiu arriscar. Não tinha alternativa. Lembrou da sua prima, a Dalva. Ela morava há cinquenta quilômetros de Santa Luzia e sempre haviam sido amigas. Era claro que Dalvinha iria ajudá-la naquele momento crítico. — Eu vou aceitar sua hospitalidade. Mas não será por muito tempo. Vou ligar para minha prima Dalva vir me salvar.

— Só se ela chegar de helicóptero – devolveu Vanderlei. — O prefeito mandou fechar as entradas, esqueceu, minha filha?

3

Ainda com o coração aos saltos, Maricota seguiu Vanderlei pela estradinha de terra, dobrou à direita e seguiu por mais alguns metros. Havia mato por todos os lados e, no fundo do caminho, a casinha do Vanderlei. Era de madeira e bem pintada. Quando chegaram frente à casa, Vanderlei fez uma mesura e apontou para a porta.

 — Pode entrar. A casa é sua.

— Muito obrigada – desconfortável, Maricota empurrou a porta, ressabiada. Se surpreendeu. O local era limpinho e bem arrumado. — Nossa, Vander. Você sabe cuidar bem da sua casinha.

 — Fique à vontade – disse ele entrando e fechando a porta. — Pode sentar. – Ele indicou um sofá velho, feito com uma colcha de retalhos. — Está com fome? Eu tenho comida na geladeira.

 — Você tem geladeira?

— Claro. Onde você acha que eu guardo o trago?

Maricota pegou o celular da bolsa.

— Primeiro preciso falar com a Dalva. Não pretendo passar minha noite aqui.

— Não se preocupe, eu tenho uma cama extra – ele parou frente à Maricota. — Ei, eu posso ajudar você a fugir daqui. Eu tenho um plano.

Maricota desligou o celular e o encarou, interessada.

— Um plano para me salvar das garras do louco do delegado? Me conte, por favor.

— Nós vamos de madrugada até sua casa, você junta suas roupas e pede para sua prima a esperar do lado de fora da cidade, antes das barricadas. Eu ajudo você a carregar suas coisas até lá.

Vanderlei acendeu um cigarro fedido e arrematou:

— Nunca vou me esquecer do seu Geraldo. Ele sempre financiou meu trago.

Maricota bateu palmas subitamente animada com aquela perspectiva.

— Grande plano. Vou ligar para a Dalva.

Ligação feita, Maricota e Vander se sentaram frente a frente para traçar o plano. Ambos chegaram à conclusão que não haveria como dar errado e, para comemorar, Maricota chegou a dividir uma garrafa de cachaça com seu novo amigo. Resultado: os dois dormiram o resto do dia e Vander acordou logo depois da meia noite, assustado.

— Acorda, mulher! Está na hora de irmos até a cidade!

O lugar era escuro e Vanderlei acionou sua lanterna. Com as pernas bambas, tensa, Maricota seguiu-o pelos caminhos escondidos da área rural de Santa Luzia. Antes de chegar à cidade recebeu uma mensagem da prima. Dalva já estava a postos na entrada da cidade aguardando novas instruções.

Era uma hora da manhã quando os dois chegaram ao centro da pequena Santa Luzia. Alguns postes de luz davam a iluminação necessária ao local. Vanderlei puxou Maricota pela manga da blusa e ambos se esgueiraram pelas sombras das ruas e andaram alguns pontos agachados para se confundirem com a escuridão. Estava indo tudo bem até aquele momento. Maricota enviou uma mensagem para Dalva para dizer que em breve se encontraria com ela e, precavida, guardou o celular dentro da calcinha. A casa branca e com um gracioso jardim na frente já era possível de ser avistada por sua dona que, alvoroçada, cutucou Vanderlei:

— Olha, estamos perto. Vou pegar o mínimo necessário e...

— Psh... – ralhou Vanderlei. — Todo silêncio é ouro.

Ele mal havia pronunciado aquelas palavras quando algo como uma teia cobriu o casal. De repente, Maricota se viu envolvida por uma rede e pensou, em um primeiro momento, ser uma brincadeira sem graça de Vanderlei. Porém, quando se virou para ele, se deu conta que o parceiro de fuga estava enredado também. E furioso.

— Mas que merda é esta? – perguntou ele em voz alta.

— Calem a boca vocês dois.

Uma voz vinda da escuridão fez com que Vander e Maricota se voltassem, assustados, para a direita. Um dos policiais segurava uma espingarda apontada diretamente para eles. Maricota ficou mais apavorada. Nunca, na vida, estivera na mira de uma arma. Vander, contudo, logo se recuperou do susto. Com as mãos na cintura olhou o policial e bradou, furioso:

— Pode explicar o que é isto aqui? Estamos sendo presos?

A voz aguda de Vander varou a noite de Santa Luzia. No entanto, nenhum vizinho abriu a janela para conferir que barraco era aquele. O policial sacudiu a arma frente aos dois em uma distância segura. Com a voz ainda em tom baixo, o homem ordenou:

— Sim, por estarem contaminados pelo mocoronga. Andem! Andem!

Maricota e Vanderlei não tiveram outra alternativa a não ser seguirem pelo caminho indicado pelo policial. Sempre na mira da espingarda, Maricota com as pernas trêmulas e Vanderlei, resmungando sozinho, caminharam pelas ruas escuras de Santa Luzia e foram parar atrás da delegacia. Nos fundos do terreno havia um pequeno galpão. O policial destrancou uma porta e disse:

— É aqui que vocês vão ficar até se livrarem da peste.

— Para começo de história, eu não estou com a peste – informou Maricota. — Estou com rinite.

— E naquele dia eu estava com dor de barriga – arrematou Vander com o dedo em riste – depois que o delegado me deu um cachorro quente estragado para eu comer.

— Calem-se! – ainda distante o policial fez um sinal com a espingarda. — Entrem aí.

Maricota na frente e Vander logo após, entraram na cela úmida e escura. O policial veio por trás, arrancou a rede e fechou o galpão. Em seguida se afastou apressado como se a peste pudesse envolvê-lo com um abraço. Maricota, furiosa, bateu o pé no chão diversas vezes.

 O que este delegado tem na cabeça? Como ele pode manter duas pessoas em cárcere privado sem ter feito nenhum exame para saber se estamos com a peste?

— Você está com o celular ainda?

— Sim.

— Então avise sua prima. Conte o que houve e descubra se ela pode dar um jeito de nos tirar desta enrascada.

Maricota pegou o celular de dentro da calcinha e telefonou na mesma hora para Dalva:

— Dalva! Você não vai adivinhar o que aconteceu...