segunda-feira, 26 de novembro de 2018

ELE VAI PEGAR VOCÊ - Capítulo 3









— O gato morreu – Mauro a encarou duramente. — Ele estava bem morto quando eu o joguei no lixão. Deve ter sido outro.
         Carol balançou a cabeça fazendo que não.
         — Eu vi. Era o mesmo.
       — Foi você quem disse que só enxergou os olhos dele. O pátio estava escuro e não deu sequer pra ver o corpo.
         — Os olhos eram dele – salientou Carol, incisiva. — Ele voltou.
         — Olha, — Mauro abriu uma latinha de cerveja. — Você está impressionada com a violência do gato preto. Não tem gato nenhum. Por que você não bebe uma cervejinha? Vai fazer com que relaxe.
         Carol bebeu não uma, mas duas latas da bebida. Sem estar acostumada com álcool, ela desabou na cama vinte minutos depois. Mauro ficou mais algum tempo assistindo TV, meio dormindo meio acordado. Ele também havia bebido além da conta com os amigos e depois de algum tempo achou que o melhor era ir pra cama de uma vez. Praticamente sem tirar a roupa, o homem deitou ao lado da esposa e não tardou a cair em um sono ferrado.
           Ele despertou, de repente, duas horas depois com o som de um miado e sentou na cama tão rápido que chegou a ficar tonto. Contudo, o silêncio ao seu redor era absoluto e Mauro se pegou dizendo várias vezes que o miado que escutara havia sido um sonho seu. Pudera, Carol esgotara tanto sua paciência que aquela história acabara por deixá-lo impressionado.
         Ele deu um salto e ficou em pé. Em silêncio saiu do quarto e foi até o banheiro, com a bexiga apertada. Distraído, acendeu a luz. E ficou paralisado. Na janelinha do banheiro, do lado de fora, a sombra de um gato se desenhava através do vidro fosco. Mauro segurou o ar, surpreso e assustado.
         Um gato. Grande. À luz da lua parecia negro também. Havia uma pequena fresta aberta na janela basculante. Mesmo tenso, Mauro conseguiu raciocinar. Não, ali não haveria espaço para um gato daquele porte passar.
         A pata peluda do bicho entrou pelo vão da janela e Mauro sentiu todos os pelos do corpo se arrepiarem. Devia estar bêbado, era isto. Aquilo não estava acontecendo. Tudo piorou quando o animal ficou em pé e a pata entrou mais ainda pela janela. O pavor tomou conta. Mauro pegou uma caneca, encheu de água e atirou na janela, atingindo o animal. Este levou um susto e recuou. O homem não perdeu tempo e se lançou na janela para fechá-la. O gato, ao perceber que não poderia mais entrar, sibilou alto e arranhou o vidro. Mauro suou frio, tremeu e teve ímpetos de chamar Carol. Mas então o gato foi embora deixando Mauro com as pernas tão fracas que por alguns instantes ele pensou que teria que se agachar até adquirir forças outra vez para ficar em pé. Depois de alguns minutos se recuperando, Mauro respirou fundo, deu meia volta e foi para o quarto onde se deitou na cama ao lado da esposa. Ele sabia que a visão do gato não era fruto do álcool. O desgraçado estava ali, de verdade. Pronto para atacá-lo. Mauro fechou os olhos, tão tenso que o coração parecia querer furar o peito. Custou a dormir e quando isto aconteceu, seu sono foi repleto de pesadelos.
*
         Carol se remexeu na cama, ainda com as pálpebras pesadas. Não estava muito disposta a levantar quando escutou a voz forte do marido:
         — Ele voltou.
         — Hein? – Carol não entendeu direito. Achou que o marido estava falando dormindo.
         — O gato. Ele voltou.
         Carol sentou e encarou o marido. Ambos estavam de olhos arregalados.
         — Como é?
         — O gato. Ele estava na janela do banheiro hoje de madrugada.
         — E o que você fez? – a jovem perguntou com a voz estridente.
         — Ele tentou entrar e joguei água no bicho. Cara, que pavor.
         Ver o marido com medo era assustador para Carol. Mauro chamava atenção por ser metido à valentão. Até o dia anterior nunca o vira dizer que tinha medo de alguma coisa. Mas um gato fora capaz de pôr toda sua coragem ladeira abaixo.
         — Viu como era verdade? Ele está nos rondando. O que iremos fazer agora?
         — Trancar a casa, portas, janelas, tudo. E ter muito cuidado quando formos até o pátio. Ele pode estar à espreita pronto para nos atacar.
         — E se colocarmos veneno?
         — Carol, o bicho tá morto.
         O casal ficou em silêncio ruminando os mais terríveis pensamentos.
         — Você não devia tê-lo matado.
         — O gato me atacou, esqueceu? Foi meu instinto de defesa.
         Mauro levantou e saiu do quarto. Fiscalizou a casa inteira e fechou toda e qualquer fresta onde o gato poderia entrar. Depois voltou para o quarto.
         — Vou buscar pão. A casa está toda fechada. Não passa nem uma mosca. E é melhor também você não ir para o pátio.
         — Eu vou junto. Não quero ficar sozinha aqui.
         Em menos de quinze minutos o casal saiu de mãos dadas e rostos um pouco sombrios. O bairro em que moravam era quase todo residencial e a vizinhança se conhecia. E como Carol era professora da escola, era muito benquista, tal qual o marido. Ambos caminhavam em silêncio em direção à padaria quando se depararam com uma aglomeração na esquina. Em torno de cinco pessoas cercava Judite, fofoqueira local. Mauro, ao ver a cena, puxou Carol pela mão.
         — Vamos atravessar para o outro lado. A velha Judite já está fazendo função de manhã cedo.
         O casal seguiu para a calçada oposta, mas Judite os viu. Com gestos largos, ela os chamou. Mauro praguejou baixinho e Carol acenou para ela com um sorriso falso.
         — Disfarce – murmurou para o marido. — Dona Judite pode perceber.
         — Era tudo o que me faltava hoje – Mauro falou em voz alta, aborrecido e com fome.
         Judite parecia nervosa. Muito nervosa. Os vizinhos ao seu redor tentavam acalmá-la. Alguns papéis nas mãos dela tremiam porque a senhora estava agitada. Carol ficou com pena e pôs a mão no ombro dela na tentativa de tranquilizá-la.
         — O que houve, Dona Judite? A senhora está pálida.
         — Estou mesmo muito nervosa, minha querida! Meu gato, o Bruno, está sumido desde ontem de manhã!
         Carol ficou com o sorriso congelado enquanto Judite colocava nas mãos de Mauro uma folha de papel ofício com o retrato colorido de um gato preto, grande e adulto. Ele permaneceu em silêncio olhando para a foto. Judite também havia colado o cartaz no poste no qual se apoiava.
         — Vocês não o viram? – choramingou. — Ele só saía para dar umas voltinhas e depois retornava. Nunca sumiu por tanto tempo.
         Carol olhou para o marido. Ambos não sabiam o que dizer.
         — Você viu alguma coisa, amor?
         Mauro balançou a cabeça, pálido.
         — Nem sinal.
         Ele tentou devolver o papel para Judite, mas ela recusou.
         — Fique com isto. Talvez você precise para reconhecer meu Bruno.
         Carol mal respirava quando olhou para o lado e deu de cara com Guilherme. O rapaz, mudo, encarava o casal com uma expressão enigmática. Carol, mais nervosa ainda, voltou sua atenção para Judite.
         — Fique tranquila. Se eu e meu esposo virmos o Bruno iremos lhe avisar. Eu prometo.
         — Muito obrigada, professora! Estou tão nervosa!
         O casal se afastou. Mauro ainda segurava o papel com a foto do gato quando perguntou entredentes:
         — O que mais me falta acontecer hoje?
         — Tem uma coisa que não contei para você – sussurrou Carol.
         — O que é? – Mauro se virou para a esposa com brusquidão.
         — O Guilherme, meu aluno. Ele quem me ajudou ontem.
         — O quê?
         Carol ficou tensa. Mauro estava furioso.
         — Por que não me disse? Achei que você tinha resolvido o problema sozinha!
         — De que jeito? Eu estava em surto por causa do bicho! E se o Guilherme abrir a boca? Eu contei que você tinha matado o gato.
         Mauro começou a suar.
         — Se ele abrir a boca, a velha vai pra polícia. Isto agora dá cadeia!
         — Amor, calma! Ninguém viu nada! Eu posso alegar que estava nervosa e falei besteira. E… sei lá. Talvez o tal Bruno esteja vivo.
         Carol olhou a foto e comentou:
         — Será que é o mesmo? Este aqui parece mais doce.
         Mauro bufava quando chegou à padaria.
         — Você trate de desmentir qualquer coisa que o tal do Guilherme falar. Não quero complicação pro meu lado por causa de um maldito gato!
         A jovem silenciou, incomodada com a fúria do marido. No retorno para casa Judite continuava rodeada por um círculo de pessoas, expressando-se com grandes gestos, falando sobre Bruno. Alguns a consolavam e seguravam as folhas com as fotos do gato. Guilherme ainda se mantinha ao lado da senhora e fuzilou o casal com os olhos. Carol engoliu em seco e seguiu ao lado de Mauro ligeiramente encolhida.


domingo, 11 de novembro de 2018

ELE VAI PEGAR VOCÊ - Capítulo 2







O dia passou calmamente, apesar do péssimo humor de Mauro. O homem nem se olhava mais no espelho por causa dos arranhões no rosto. Carol providenciou um medicamento para os ferimentos não infeccionarem. Ainda assim Mauro não resistiu a um convite para ir jogar futebol com os amigos no fim da tarde. Carol, contrariada, assistiu o marido calçar as chuteiras, vestir o uniforme e sair faceiro porta afora. Cansada dos afazeres do dia, Carol deitou no sofá para dar uma olhadinha na novela. Nem se deu conta quando pegou no sono.
         Vinte minutos depois Carol despertou com um som estranho. Já era noite e soprava um vento forte. Sentada no sofá, ela apurou os ouvidos. Só se escutava as vozes da TV ligada e mais nada. Mesmo assim ficou inquieta. Faltava ainda um bom tempo para Mauro voltar do futebol. Carol resolveu não dar bola para o caso e se levantou para ir até a cozinha pegar um copo de água.
         Um miado profundo e rouco vindo do lado de fora a fez dar um pulo. Com o susto o copo caiu das suas mãos e se espatifou no chão ao mesmo tempo em que a moça, com a mão sobre o peito, tentava conter as batidas do coração. O que era aquilo, afinal? Um… gato?
         O silêncio retornou à cozinha e, trêmula, Carol pegou a vassoura para limpar os cacos. Aos poucos ela foi se acalmando. Podia ter sido qualquer outra coisa, inclusive sua imaginação abalada. Era melhor voltar a ver a novela. Ela juntou os estilhaços, enrolou em uma folha de jornal e abriu a porta para colocar na lata de lixo lá fora, no pátio.
         O grito que Carol deu foi ouvido longe. Dois olhos brilhantes a fitavam no escuro do pátio. Carol não enxergou mais nada além disso. Somente os olhos, aquelas duas bolitas esverdeadas e frias que pareciam prestes a atacar Carol a qualquer momento.
         Carol fechou a porta com tanta força que ela bateu e voltou a abrir outra vez. A porta só se fechou de verdade quando Carol se jogou sobre ela temendo que o animal invadisse a casa e a atacasse.
         Passando mal, ofegante e quase sem poder caminhar por causa das pernas bambas, Carol se arrastou até a sala. Procurou com os olhos o celular para implorar a Mauro voltar para casa o quanto antes, porém, não o encontrou. Mal podia se manter em pé e levou mais um susto quando fortes batidas na porta da frente a fizeram dar outro grito, só que desta vez abafado.
         — Professora Carol! A senhora está bem?
         Arfante, ela reconheceu a voz de um dos seus alunos, o aplicado Guilherme. Carol foi tropeçando até a porta e abriu, atemorizada:
         — Nossa, professora! O que houve?
         Carol se apoiou no batente, exausta. Encarou Guilherme que lhe devolveu um olhar atônito e murmurou:
         — Ainda bem... ainda bem que você está aqui.
         O rapaz apontou para os pés de Carol.
         — Professora! A senhora está machucada!
         Ela olhou para baixo e se surpreendeu com o sangue que esvaía dos seus pés. Levou alguns segundos até se dar conta o que era aquilo tudo.
         — Eu... eu quebrei um copo praticamente em cima do meu pé.
         — Puxa – assoviou ele, — pelo jeito que a senhora gritou pensei que alguém estivesse lhe fazendo mal.
         Ainda apavorada, Carol segurou o aluno pela camiseta.
         — Tem um gato lá fora!
         — Hein?
         — Um gato. O gato que o Mauro matou hoje de manhã! Ele voltou!
         Guilherme não entendeu direito, mas os olhos fixos e amedrontados de Carol mostravam tanto terror que ele decidiu tomar uma atitude.
         — Professora, me diga onde ele está! Posso afugentá-lo. Ei, a senhora disse que o gato morreu?
         Carol levou o garoto até a porta do pátio. Com o dedo trêmulo ela apontou:
         — Ele está do outro lado.
         Era nítida a perturbação da professora Carolina. Conhecida no bairro como uma mulher séria e correta, Guilherme tinha certeza que aquele comportamento tinha uma razão muito forte.
         — Pode deixar, professora – o rapaz pegou a vassoura mostrando determinação. — Se tem alguma coisa aí do lado de fora, pode ter certeza que eu vou botar pra correr!
         Guilherme abriu a porta com valentia e acendeu a luz do pátio. De repente tudo ficou iluminado. E do gato não havia o menor sinal.
         — Não tem nada aqui.
         — Mas tinha – retrucou Carol com a voz fraca.
         O rapaz caminhou pelo pátio procurando o tal gato, verificando se o bicho estaria em algum canto mal iluminado. Com a porta encostada e só com a cabeça pra fora, Carol acompanhou a inspeção do aluno, atenta. Por fim, ele voltou para dentro da casa e pôs a vassoura de volta no lugar.
         — Acho que ele fugiu. Mas, professora... Eu não entendi bem uma coisa. A senhora disse que o seu marido matou o bicho? Então como ele voltou?
         Nem Carol sabia o que responder. O gato estava morto quando Mauro o pôs dentro do saco. O lixão ficava longe, bem longe. Não, devia ser outro gato parecido. Ou somente sua imaginação fértil e histérica.
         — Muito obrigada, Guilherme – Carol ignorou a pergunta e com uma das mãos nas costas do rapaz conduziu-o até a porta da frente. — Acho que ando assistindo muitos filmes de terror.
         — Pode me chamar se for preciso, professora – Guilherme só faltou bater continência. — Estarei aqui em dois segundos.
         Ela agradeceu e o rapaz foi embora. Zonza, ela sentou no sofá, encolhida, e esperou o marido voltar.


sexta-feira, 9 de novembro de 2018

ELE VAI PEGAR VOCÊ - Capítulo 1

Sinopse

Um gato aparece no pátio da casa de Carol. Mas o que poderia ser uma visitinha amigável se transforma num roteiro de terror. Para não serem atacados pelo bichano, Carol e o marido são obrigados a trancarem a casa inteira. Mas nada parece ser capaz de deter aquele gato negro que de fofo não tinha absolutamente nada.





Era um gato como qualquer outro. Preto, adulto, de bom tamanho. Apareceu na casa da Carol um sábado pela manhã vindo não se sabia de onde. Foi descoberto quando a moça abriu a porta que dava para o pátio. Deu de cara com o bicho a fitando com seus olhos amarelos. Não parecia muito amigável. Depois do susto inicial, Carol, que adorava gatos, tentou fazer uma interação com o felino. Não deu certo. Ele arreganhou os dentes e eriçou os pelos.

 — Nossa – Carol se encolheu. Ela precisava passar pelo gato para ir regar as plantas no fundo do pátio. — Sai daí. Xô. Xô, gato! Xô!

Ele sequer se moveu. Continuou encarando Carol como se fosse o dono do lugar. Impaciente, ela atirou um pouco de água nele. Foi pior. O gato então ficou em pé e Carol recuou com medo de um ataque. Porém, o gato não parecia querer briga, ainda que permanecesse encarando Carol com um ar até de deboche.

— Ah, você não vai sair? – Carol colocou o regador no chão. — Vamos ver quem ganha!

A moça deu meia volta e entrou na casa, não sem antes fechar a porta por medida de segurança. Não podia se dar ao luxo do gato invadir a cozinha e roubar a comida. O marido dormia a sono solto no quarto, mas isto não impediu de Carol sacudi-lo com força.

— Mauro, acorda. Acorda, é urgente.

Ele abriu um olho, depois outro. Instantes depois, entre um bocejo e outro, resmungou:

— Que foi?
— Tem um gato lá fora.

Mauro não respondeu logo e Carol pensou que ele estivesse dormindo outra vez. Ia sacudir o marido de novo quando ele perguntou:

— Você não gosta de gatos?
— Gosto, mas aquele é esquisito. Não consegui passar por ele para ir molhar as plantas.

O homem bocejou. Não estava interessado. A única coisa que queria era curar a ressaca da noite passada.

— Deixa ele lá. Depois o bicho vai embora.
— E se não for? Mauro, o gato tem jeito de mau!

Não tendo outro jeito, Mauro se espreguiçou para todos os lados possíveis e, com os efeitos da bebedeira da noite anterior, levou um tempo para ficar em pé.

— Vem logo, amor.

Mauro seguiu Carol até a porta do pátio. Ela apontou para o local e falou com um certo tom de medo na voz:

— O gato tá do outro lado.
— Calma. Você que deixou o bicho nervoso.
— Ele não é nervoso. Só é estranho.     

Com Carol alguns passos atrás, Mauro abriu a porta. De fato, o gato continuava ali, sentado outra vez, como se estivesse aguardando-o. Os olhos do animal fuzilaram o homem que chegou a prender o ar.

— Epa – disse ele, surpreso. — Mas o que é isto?
— O que foi, Mauro? – havia tensão na voz de Carol. — Ele continua aí?
— Sim – Mauro segurava a porta, ainda no batente. Não deu nenhum passo para frente como se temesse que o gato reagisse. — Por que ele fica olhando a gente deste jeito?

— Não falei para você? Tem algo estranho com ele.

Mauro, em sua dignidade masculina, não podia demonstrar o quanto aquela sensação o desagradava. Sem tirar os olhos do gato, ele estendeu o braço para trás e pediu:

— Me passa a vassoura.

Carol fez o que o marido pediu e recomendou:

— Não vá machucar o gato.
— Só quero assustar.

Mauro segurou a vassoura com uma das mãos e a com a outra mão livre fez um gesto em direção ao gato.

— Sai daqui. Volte para sua casa.

O gato não se moveu. Permaneceu sentado no mesmo lugar sem abandonar o ar irônico. Mauro não gostou muito daquele comportamento.

— Você é bem engraçadinho, não é mesmo? Se não sair por bem, vai sair por mal. Entendeu bem?
— Mauro – pediu Carol outra vez. — Você só tem que tirar o gato daqui.

Mal Carol havia terminado de falar, um grito estridente que mais tarde ela identificou como sendo miado do gato, feriu seus ouvidos. Em seguida o marido recuou violentamente para trás, aos urros, tentando afastar o animal que se jogara sobre ele.

Carol gritou junto e por instantes a casa foi tomada por sons de urros e miados. A visão do marido tentando desgrudar o gato do peito era horrenda. Sangue escorria do torso do homem provocado pelas garras afiadas do animal. Na bochecha de Mauro havia três grandes arranhões. Mauro se debatia, desesperado. Carol segurou a náusea que lhe subia pela garganta acima, incapaz de qualquer coisa para deter o ataque. Em algum momento Mauro conseguiu atirar o gato para longe de si. Ainda atordoado, ele percebeu que o felino se aprumava para uma nova e feroz investida. Desta vez, contudo, Mauro foi mais rápido. Um chute certeiro acertou a cabeça do gato que voou três metros adiante no pátio.

Então tudo silenciou. Carol mal respirava e caminhou com as pernas bambas até ao lado do marido.

— Minha nossa – murmurou ele, ofegante, olhando para seu próprio peito ensanguentado. Em seguida ele tocou no rosto e se surpreendeu ao ver as pontas dos dedos manchadas de sangue. — Este bicho infeliz estava possuído pelo capeta.

— Você matou o gato – Carol afirmou o óbvio, chocada com tudo o que presenciara.
— E você queria que eu fizesse o quê? Não viu o que ele fez comigo?

O corpo do gato jazia, inerte, provocando uma sensação de mal-estar no casal.

— E agora, Mauro? O que a gente faz?
— Vou levar este bicho daqui. Ele pode ser de alguém da vizinhança e eu não quero me incomodar.

Mesmo com o sangue escorrendo pelo corpo, Mauro pegou um saco grande de lixo e jogou o gato lá dentro. Carol observava a cena com os olhos cheios de lágrimas.

— Pobrezinho...
— Pobrezinho de mim! – esbravejou Mauro segurando o saco com uma das mãos. — Olha aqui como eu fiquei. Como eu vou trabalhar na segunda-feira com o rosto cheio de arranhões?

Mauro entrou na casa com o saco e deixou em um canto. Rápido, ele foi até o banheiro onde passou uma toalha molhada para remover o sangue. Com um algodão Carol tentou melhorar a aparência das lesões no rosto.

— Tomara que não infeccione – sussurrou ela.
— Vou levar o saco para bem longe daqui. Você vem comigo?

Minutos depois Carol e Mauro entraram no carro com o saco contendo o corpo do gato no porta-malas. Meia hora depois, ainda irritado, Mauro atirou o gato no lixão localizado na saída da cidade. Depois, com Carol fungando ao seu lado, ele partiu pisando fundo no acelerador.

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

ELE





  
Ele me olha
Ele sabe
Espero um movimento dele
Um gesto
Um indicativo
Então ele segue seu caminho
Observo seus movimentos
Mal respiro
Tremo
Me recomponho
Ele ainda não percebe
Mas já me pertence

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

O NOME DELA É VAL (erótico)









Meu negócio sempre foram os homens e poucas vezes na minha vida fiquei sem namorado. Mas quando vi a Val me apaixonei na hora. Não me pergunte o que aconteceu comigo. Tudo começou numa festa. Eu estava com meu grupo de amigos em um bar quando de repente ela apareceu. Levei um choque assim que a vi. Me fascinei por aqueles cabelos vermelhos e os olhos verdes que volta e meia pousavam sobre os meus. Tínhamos amigos em comum e Val já estava um pouco alta. Mas não me importei. Ela era linda, divertida, louca. A risada era uma delícia e eu não conseguia desviar o olhar da Val. Me apaixonei tão rápido que não tive muito tempo para me questionar sobre aquilo. Enquanto Val ria, contava piadas e jogava charme para quem quisesse, eu me mantive quieta, absorvida pelo seu encanto. Estávamos em lados opostos e tudo que eu queria era me aproximar e tocar naquele cabelo brilhante, no rosto, no corpo. Eu tinha concorrência, contudo. Alguns rapazes que estavam conosco também a cobiçavam, bastava ver pelos olhares que lançavam a ela. Achei que jamais teria chance com Val até que ela se levantou para ir ao banheiro. Eu fui atrás.

Encontrei-a frente à pia borrifando água no rosto com a pontinha dos dedos. Estávamos sozinhas, pelo menos naquele momento. Val pressentiu minha presença e virou a cabeça para o meu lado, devagarzinho. Com uma mecha do cabelo vermelho caindo sobre um dos olhos, ela perguntou com a voz um pouco arrastada por causa da bebida:

— O que você quer?
— Um beijo seu – respondi um pouco ofegante.

Val soltou aquela risada que me fascinava.

— Deixa de ser doida, mulher.

Avancei com passos decididos na direção dela sem pensar em nada para não perder a coragem. Mais alta que Val, eu a empurrei de encontro à parede e fiquei frente a ela bloqueando a passagem. Eu não iria deixar que ela fugisse de mim. Seria aquela noite ou nunca mais.

Não sei se por estar ligeiramente bêbada ou por estar afim mesmo, Val não ofereceu a menor resistência. Colei minha boca na dela; até então eu nunca tinha beijado nenhuma garota na vida. Val correspondeu e senti as mãos dela percorrendo minhas costas. Me excitei mais e apertei com força um dos seios dela ao mesmo tempo que a puxava para mais junto de mim. Quando Val gemeu de prazer dentro da minha boca em meio a um beijo pegado, fiquei mais louca do que já estava.

As mãos de Val se grudaram na minha bunda e me apertaram. Eu estava de saia e a guiei direto para minha calcinha. Os dedos dela me exploraram e minhas pernas amoleceram. Da boca da Val eu desci meus lábios pelo pescoço até os seios onde a chupei com tanta força que ela gemeu mais forte ainda. Os dedos de Val continuavam na minha buceta, no meu grelo, massageando, apertando, sabendo exatamente onde tinha que tocar. Neste meio tempo a porta do banheiro se abria e fechava. Acho que as mulheres davam meia volta quando viam nós duas nos pegando feito duas loucas, grudadas na parede.

Então a Val se agachou na minha frente, levantou minha saia e quase arrancou a calcinha que eu vestia. Senti a língua dela dentro da minha xoxota, indo e vindo, me chupando e gemendo tanto quanto eu. Forcei a cabeça da Val para mais dentro de mim ainda. Minhas pernas já nem tinham muita sustentação e quando ela enterrou dois dedos dentro do meu cuzinho soltei um grito alto, vi estrelas e desabei no chão, nos pés dela. Ali fiquei inerte, acabada e apaixonada. Enquanto me recuperava, Val foi até a pia, lavou a boca, as mãos, se recompôs e saiu do banheiro. Fiquei no chão frio por mais alguns minutos, de joelhos, respirando fundo, com a calcinha fora do lugar e a minissaia na cintura. O banheiro começou a ser utilizado novamente, um entra e sai de mulheres enquanto eu estava ali, tentando sair do meu torpor, um tanto envergonhada por estar naquela posição. Outra coisa me incomodava também. Eu havia sido abandonada.

Finalmente consegui me levantar. Ajeitei minha roupa e o cabelo, ignorando alguns olhares curiosos. Eu não devia estar chateada. Afinal, conhecera Val há menos de uma hora. Mas... nossa, ela havia balançado comigo. Transar com ela fora maravilhoso, mas ser largada no fundo de um banheiro de bar não era nada romântico. Me achei uma besta ter me apaixonado daquele jeito. E toda vez que eu fechava os olhos enxergava o corpo da Val e tremia de excitação.

Antes de voltar até onde estavam meus amigos precisei retocar minha aparência. Penteei meus cabelos com os dedos e uma boa alma me emprestou um batom. Saí do banho como se nada tivesse acontecido, procurando Val desesperadamente. Demorei um pouco para me juntar à turma. Com os olhos catei Val por todo o bar. Subi ao andar de cima, mas nem sinal. Por fim, deduzi que ela havia ido embora e voltei para a mesa, desconsolada. Talvez meus amigos desconfiassem o que havia acontecido, mas todos foram discretos o suficiente para não falarem nada naquele sentido. Como desculpa para minha fossa, acabei exagerando na bebida, coisa rara de acontecer. Saí do bar uma hora depois de braço dado com um dos meus amigos e a única coisa que eu queria era ir para minha casa, tomar um banho e dormir. E então, quando eu me sentisse normal outra vez e pudesse reassentar meus pensamentos, talvez pudesse refletir sobre aqueles acontecimentos que me tiraram completamente a razão.

domingo, 5 de agosto de 2018

EVELINE



Olá, Leitorinhos!

Abaixo segue o primeiro capítulo de uma novela que estou escrevendo. Do que eu posso adiantar a sinopse, é sobre uma jovem de 20 anos cujo maior sonho é namorar e casar com um rapaz do seu bairro. Como todos seus planos em conquistá-lo dão errado, Eveline apela para um conhecido programa de televisão, o campeão de audiência Namora Comigo.


        

1
        – Bom dia, mundo!
         Eveline escancarou as venezianas da janela do quarto. Eram sete horas da manhã e as ruas do bairro recém começavam a ter algum movimento de pessoas indo para o trabalho. Lá da cozinha vinham os ruídos da mãe começando seus afazeres. O domingo havia sido longo com uma encomenda grande de bolo para uma festa de 15 anos. Eveline ajudara a mãe e com isto perdera um belo dia de sol. Mas não se importou muito. A mãe precisava daquele dinheirinho para pagar algumas contas pendentes.
         Ela desceu as escadas já pronta e maquiada. Cândida, com um lenço na cabeça, analisava os pedidos de encomendas para aquele dia.
     – Bom dia, mãe – Eveline deu um beijo na bochecha de Cândida e pegou um pedaço e pão. – Muita coisa para hoje?
         – Sim, mas eu vou dar conta – Cândida respondeu sem tirar os olhos do papel onde anotara tudo. – Seria muito melhor se você largasse o emprego na loja para me ajudar. Já pensou o quanto podíamos faturar? Nós duas juntas?
      – Ah, mãe... Não venha com este papo de novo – Eveline abriu a geladeira. – Não tem suco de laranja?
         – A Oscarina tomou tudo ontem.
Eveline se limitou a sacudir os ombros e terminou por pegar um copo de água. – A tia já saiu?
         – Claro – Cândida deu uma risada debochada. – Ela faz tudo por aquele emprego. Até darem um belo chute na sua bunda. Aí eu quero ver – Cândida olhou para a filha. – Você é como ela. Dá a vida pela loja até lhe mandarem embora com uma mão na frente e outra atrás.
         Eveline se encostou na bancada da pia ainda mastigando o pedaço de pão.
         – Mãe, hoje é recém segunda–feira. Não comece, por favor. Quero uma semana tranquila para nós. Além do mais, o Douglas não teria coragem de fazer isto comigo. Sou a melhor vendedora da loja.
         A jovem fez uma pirueta em frente à mãe.
         – Como estou?
         Cândida, concentrada nas suas tarefas, mal olhou para ela.
         – Hein?
         – Mãe! – Eveline pôs as mãos na cintura. – Estou bem? A minissaia é nova. Percebeu?
         Cândida observou a filha dar uma volta em torno de si mesma.
         – Por mim você está como sempre. Ah, legal a minissaia.
         – Puxa... mas eu não engordei nenhum pouquinho?
         – Não. Embora coma igual a um cavalo você está do mesmo jeito. E se dê por feliz, Eveline, com tanta mulher querendo emagrecer por aí. Posso trabalhar agora?
         Eveline fez um muxoxo. Fazia quase um ano que poupava dinheiro para implantar silicone no peito e na bunda. Mas ainda não conseguira juntar nem a metade para realizar o procedimento. Isto explicava o fato de ser a melhor vendedora da loja onde trabalhava. Precisava, desesperadamente, de um corpo novo.
         – Queria muito ter o bundão da Soraia – divagou ela.
         – Como é?
  – A Soraia. Namorada do Alexsander – Eveline não conseguiu disfarçar o despeito ao mencionar o nome da rival. – Eu podia ter aquele corpo.
         – Olha aqui, Eveline – Cândida perdeu a paciência de vez. – Se você cursasse uma faculdade não pensaria em tanta inutilidade. Me deixa trabalhar. Olha o mundo de coisa que eu tenho para fazer hoje.
         Eveline revirou os olhos. Uma hora depois a jovem pegou a bolsa, borrifou uma dose generosa de perfume no corpo e renovou o batom vermelho. Sabia estar longe de ser a mais mulher mais desejada, mas quando abriu a porta de casa para ir ao trabalho estava pronta para ganhar o mundo.


quinta-feira, 28 de junho de 2018

MEU AMOR MISTERIOSO - ONDE ESTOU?





Clarissa se encontrou com Mariana novamente no dia seguinte perto do meio dia. Estava entrando no mercadinho e por pouco não esbarrou nela. Mariana ficou ligeiramente desconcertada.
— Oh, Clarissa! Tudo bem com você?
— Oi, tudo ótimo.
As duas ficaram paradas frente a frente, uma bloqueando a passagem da outra.
— Suas mãos... como estão?
— Ah, estão melhores – Clarissa mostrou as palmas das mãos para ela. — Só ardem um pouquinho. Você… você dormiu bem depois de ontem?
Mariana não demonstrava estar disposta a falar sobre o ocorrido. Estava bem nítida na sua expressão o quanto o assunto a incomodava.
— Dormi muito bem – garantiu ela, mas Clarissa não acreditou. — Feito uma pedra.
— Que ótimo.
— Bem, eu preciso ir. Meus gatos estão com fome.
A mulher forçou a passagem, ansiosa para ir embora. Antes, porém, que ela fugisse, Clarissa tratou logo de perguntar:
— Você não o conhece mesmo? Tem certeza que nunca o viu?
Clarissa percebeu uma leve mudança no semblante de Mariana. Ela respirou fundo, disfarçadamente, e piscou os olhos duas vezes. Não adiantava dizer que não sabia do que Clarissa estava falando.
— Já respondi isto ontem para você – Mariana retrucou com muita calma. — Ele é um total desconhecido para mim.
As duas se encararam por mais um instante e Mariana se despediu, alegando mais uma vez que os gatinhos estavam famintos.
Clarissa voltou para casa mais intrigada que nunca. E animada também. Tinha dois mistérios para desvendar: a hospedaria e o coração atormentado de Mariana.
Não sabia nem por onde começar.
*
Toda vez que Clarissa ia para a hospedaria, o tempo ficava feio e ameaçava chuva. Por isto, naquela tarde, antes de pegar a bicicleta para ir novamente até lá, ela olhou para o céu atentamente. O dia estava lindo e sem sinal de nuvens. A previsão do tempo também era favorável. Nada de chuva ou vendaval. Portanto, se despencasse uma chuvarada de repente era por que realmente havia algo de muito errado com aquele local.
Foi com o coração transbordando pela boca que Clarissa tomou o rumo da hospedaria. Durante o trajeto sentiu as pernas amolecerem várias vezes e a garganta ficar seca. Não sabia mais o que esperar daquele lugar. Tudo o que acontecia lá era estranho e Clarissa não sabia mais o que era verdade ou não. Não eram nem três horas da tarde. Decidira ir cedo para não ter que voltar à noite, caso se demorasse por algum motivo. No entanto, sabia que não teria coragem de subir até a casa. Se deparar com as ruínas ou com Dani no meio do salão abandonado era demais para seu coração.
A avó estava desconfiada que alguma coisa estranha estava acontecendo em razão do pouco apetite da neta durante o almoço. A ansiedade a atormentavam e lhe tirava a fome. Para Dona Iara não aumentar seu grau de desconfiança e para que ela própria não ficasse fraca, Clarissa comeu arroz, feijão e carne, em porções pequenas. Não podia se dar ao luxo de ficar doente justo naquele momento. Aliás, suas férias não poderiam acabar antes que desvendasse todo aquele mistério.
Mariana não perdia por esperar.
Quando chegou ao bairro o céu continuava azul. O dia estava quente e bonito, muito convidativo para dar uma volta de bicicleta. As pernas estavam cansadas das pedaladas e do nervosismo, mas Clarissa não pensava em desistir quando avançou pelas ruas calmas. Naquela tarde havia um pouco mais de movimento. Algumas pessoas nos jardins, cachorros passeando soltos nas ruas. Muitas casas permaneciam fechadas conferindo um ar de abandono maior ao local. Aquilo deixava Clarissa nervosa e ela passou praticamente reto pelas casas sem olhar para nenhuma delas. Ela só parou frente à hospedaria.
Clarissa apoiou os pés no chão sem desmontar da bike. Respirou fundo e depois soltou todo o ar pela boca. Para sua investigação ser completa ela sabia que teria que subir até a hospedaria. Mas cadê a coragem? A garota olhou para cima, sem conseguir enxergar nada além das árvores. Ao fechar os olhos visualizou o rapaz sentado em um dos bancos do jardim como se estivesse esperando-a. Clarissa engoliu em seco. Não havia nada lá em cima. Nem hóspedes, nem Dani, somente uma edificação em ruínas.
Ainda de olhos fechados Clarissa percebeu algo estranho no ar. Primeiro foram algumas notas suaves trazidas pelo vento. Ela quase suspendeu a respiração. Não podia ser verdade! Depois a música se tornou mais forte, mais nítida. Não era a mesma que Clarissa havia escutado naquela tarde em que presenciara Dani ao piano.
Clarissa não tinha coragem sequer de se mexer. Olhos cerrados, pés firmes no chão e as mãos segurando com força a bicicleta. Qualquer movimento iria dissolver a mágica do momento. Lá em cima Dani estava tocando para ela e duas lágrimas escorreram pelo seu rosto. Será que ele estava lhe chamando? Ela deixou o ar escapar devagarzinho. Talvez a hospedaria estivesse funcionando em toda sua glória.
Poderia subir. Por que não?
Um deslocamento de ar ao seu lado em meio a passos suaves fez com que Clarissa abrisse os olhos, surpresa. Por meio segundo achou que veria Dani parado ao seu lado. Mas não era ele. Uma senhora de cabelos brancos, aparentando ser da idade da sua avó, encarava-a atentamente. Clarissa deixou escapar um gritinho de susto.
— Oh, me desculpe – disse a mulher, sorridente. — Não tinha intenção de assustá-la.
Clarissa sabia estar branca de medo, mas pelo menos o coração já batia mais devagar.
— Tudo bem – ela deixou o ar sair aos poucos. — Eu estava concentrada na música.
A garota se calou bruscamente. Música. Que mico. Na certa a senhora não deveria estar ouvindo música nenhuma.
— Eu escuto sempre.
— Como assim? – Clarissa chegou a piscar. — Você... você consegue escutar o som do piano?
Ela balançou a cabeça fazendo que sim.
— Quase sempre. Os acordes do piano são trazidos pelo vento para os poucos que restaram no bairro. Algumas vezes ouvimos sem vento algum também. É como se fosse um encantamento. Alguém – ela apontou para o alto, para a hospedaria — gosta de nós.
Clarissa olhou para onde a mulher apontava e depois se voltou para ela.
— Você já morava aqui quando este lugar funcionava?
Ela balançou a cabeça fazendo que sim.
— Nunca participei de festa nenhuma, mas eu via os carros chegando. As festas eram lindas. Eu escutava o som das vozes e das músicas aqui de baixo. Muita gente famosa vinha até aqui, mas eu não via ninguém. Eles chegavam em seus carros poderosos e de vidros escuros e subiam o caminho de pedras dispostos a passar horas maravilhosas – ela deu uma risadinha. — Confesso que morria de inveja, mas não podia sequer parar aqui na frente. Havia uma legião de seguranças que não deixava os pobres mortais passar dos limites estipulados por eles.
— Então me diga uma coisa – pediu Clarissa com a garganta seca. — Quem é o pianista? Quem é a pessoa que toca piano tão lindamente?
Ela balançou a cabeça com ar pesaroso.
— Eu nunca soube, minha menina. Enfim... mas ele nunca nos abandonou. Ou ela. Mesmo com a hospedaria virada em escombros, há dias e noites que o escutamos por várias horas seguidas. Como agora.
— Mas… você tem certeza que vem lá de cima?
A senhora riu.
— Você acha que vem de onde?
A história causava mais espanto ainda em Clarissa. O relato da mulher deixara sua pele toda arrepiada.
— Então há alguém lá em cima – insistiu a garota.
— Não há ninguém lá – a mulher afirmou, categórica. — Ninguém vivo.
Clarissa sentiu que ficava mais pálida ainda.
— Não precisa se preocupar. Os fantasmas que habitam a hospedaria até hoje são inofensivos. É a música, a risada deles, o som das taças de champanhe que alegram este bairro tão abandonado.
— Meu Deus! Vocês escutam as vozes dos hóspedes também?
— Quando assim é permitido.
A jovem olhou para a mulher. Os cabelos brancos lhe davam um ar simpático e sua voz inspirava grande sensação de paz, apesar do pavor de Clarissa.
— Você é de verdade?
Clarissa se surpreendeu com sua própria pergunta. A mulher olhou para ela e sorriu:
— Depende do plano em que você está.
— Bem, eu preciso ir – disse Clarissa com a voz incerta. Ela segurou firme o guidom da bicicleta. Lá em cima a música se tornou mais alta.
— Volte sempre que quiser – a mulher falou quando Clarissa começou a dar meia volta para sair o mais rápido possível dali. — Não são todos que conseguem ouvir o pianista.
*
Clarissa chegou abalada em casa. A avó cozinhava seus doces na cozinha e pediu seu auxílio. Afobada, não percebeu a inquietação da neta. Enquanto misturava os ingredientes, a garota se perguntava aonde iria parar com toda aquela investigação. Cada vez que ia até a hospedaria voltava com uma novidade incompreensível. Não sabia mais o que pensar. Tivera contato com pessoas que não sabia sequer se estavam vivas. Isto era terrível, quase um pesadelo. Desistira de procurar Dani pelas ruas. Sabia que ele agora estava na hospedaria, tocando seu piano para quem tivesse a sorte de ouvir. Pensou em convidar o avô Ricardo para ir até lá. Confiava nele. Certamente o homem não sofreria nenhuma alucinação como ela vinha tendo desde que pusera os pés na hospedaria.
— Ai!
Dona Iara espichou os olhos para a neta.
— O que houve, Clarinha?
— Nada demais, vó – disse ela lambendo o dedo. — Me queimei com o creme.
— Ih… − fez Dona Iara. — Você anda bem esquisita ultimamente.
— Eu, vó? Impressão sua.
Alguém bateu na campainha e Clarissa deu graças a Deus pela conversa ter sido interrompida. Dona Iara largou as coisas sobre a mesa e foi até a porta. Clarissa respirou fundo. Esperava que a avó não tornasse a vir com aquele assunto chato.
— Mariana! Tudo bem?
Clarissa levou um susto ao escutar o nome de Mariana e foi atrás da avó. Deparou-se com ela parada no meio da sala com uma expressão preocupada. Os olhos das duas se encontraram por alguns instantes.
— Preciso de uma ajuda sua, Dona Iara.
Mariana trazia urgência na voz. Ela estava inquieta, esfregando as mãos nervosamente.
— O que houve, criatura? Você está tensa.
— Recebi agora uma ligação da minha irmã, Solange – ela explicou. — Ela sofreu uma queda e está machucada. Pediu que eu fosse ajudá-la. – Mariana respirou fundo para buscar ar. — Minha irmã mora há trezentos quilômetros daqui.
Clarissa não perdia nada da conversa.
— Em que eu posso lhe ajudar, querida? – Dona Iara segurou as mãos geladas de Mariana.
— Meus gatos. Vou ficar um tempo fora e não tenho ninguém de confiança para cuidar deles. Preciso que alguém passe na minha casa todos os dias para dar comida aos bichinhos. A senhora pode fazer isto por mim?
Havia um brilho de ansiedade nos olhos de Mariana que cortou o coração de Dona Iara. Ela logo se prontificou:
— Claro, claro que sim. Pode contar comigo sempre.
— Dona Iara, eu não sei quanto tempo irá levar para eu voltar. Minha irmã tem filhos pequenos e ninguém para cuidar da casa. Vou fazer o possível para não demorar por lá.
— Mariana, não se preocupe. Eu vou cuidar bem dos gatinhos. Vá tranquila cuidar da sua irmã.
— Ela é a única pessoa que tenho neste mundo, Dona Iara – confessou Mariana para surpresa da senhora e também de Clarissa. A mulher remexeu dentro da bolsa e pegou várias notas de dinheiro. — Tome, Dona Iara. Isto dará para comprar ração para os gatos e cobrir mais alguma despesa.
Dona Iara pegou o dinheiro e o guardou cuidadosamente dentro de uma gaveta. Depois se voltou novamente para Mariana que continuava retorcendo as mãos sem parar.
— Fique tranquila e viaje sossegada, querida. Ligue para meu celular se precisar de alguma coisa.
— Muito obrigada – agradeceu Mariana. — Minhas coisas já estão no carro. Já coloquei comida para eles hoje. Bem, eu preciso ir.
As duas mulheres se despediram na porta e Mariana saiu sem olhar para Clarissa. Dona Iara observou a amiga partir e murmurou:
— Coitadinha da Mariana. Espero que tudo se resolva por lá.
A mente de Clarissa fervilhava.
— Vó, eu posso cuidar dos gatos da Mariana. Você não precisa ir na casa dela todos os dias.
— Veremos isto depois, Clarinha. O importante é não falharmos com Mariana neste momento em que ela precisa tanto de nós.