sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

SOMENTE NOS MEUS SONHOS (Cap, 6)




Por precaução, Lucinda pediu para o motorista do carro parar uma quadra antes. Depois, mal o veículo se afastou, encaminhou-se a passos lentos até a sede da empresa. Somente então se deu conta do tamanho da sua ousadia. Henrique Malta era o dono todo poderoso daquele lugar. Ele certamente teria coisa mais importante para fazer a receber uma total desconhecida com uma ideia maluca. Lucinda tinha a clara impressão que não passaria sequer da recepção.

Entrar no prédio não foi difícil. Lucinda nunca havia estado em um lugar tão chique. Uma recepcionista bem arrumada a encarava detrás de um balcão. Foi para lá que Lucinda se dirigiu lembrando que não tinha ensaiado nada para dizer.

— Bom dia – cumprimentou a recepcionista, formalmente. — Em que posso ajudá-la?
— Preciso falar com o Doutor Henrique Malta – a voz de Lucinda era praticamente um sussurro.
— Tem hora marcada?

Meu Deus. Não havia pensado naquilo. Com o coração acelerado, ciente de que da recepção não passaria, Lucinda disse:

— Não.

A moça alcançou para Lucinda um crachá escrito “visitante” e indicou:

— Pegue o elevador. 4º andar.
— Obrigada – respondeu Lucinda, afastando-se rapidamente antes que alguém interrompesse seu trajeto.

Ela entrou no elevador e quando informou ao ascensorista o andar que pretendia ir, esperou da parte dele uma reação. Nada.

O elevador chegou ao andar da presidência e Lucinda se viu subitamente em um local sofisticado, muito diferente do seu mundinho simples. Ela percorreu um pequeno trajeto até uma porta envidraçada. Uma mulher estava atrás de uma mesa grande com muitos papéis, computador e agenda. Ela estava ao telefone quando Lucinda empurrou a porta devagar. Com passos miúdos, a jovem se postou frente à mesa e aguardou, tensa, que a secretária particular de Henrique Malta pudesse lhe atender. Talvez ela já soubesse que uma moça esquisita queria falar com o todo poderoso.

— Bom dia. Você veio aqui falar com o Doutor Henrique.

Não era uma pergunta. Lucinda se sentiu intimidada, embora a mulher não estivesse sendo grosseira ou mal educada.

— Sim senhora.
— Qual o assunto? Você não marcou hora.

Lucinda confessou:

— Foi tudo muito repentino. E eu não sabia que deveria agendar.
— Bem, mas sobre qual é o assunto? Emprego?
— Não. Eu… é particular.

A secretária suspirou.

— Moça… Seu nome qual é?
— Lucinda – a voz saiu rouca.
— Doutor Henrique é muito ocupado. Às vezes as pessoas o procuram para tratar de assuntos que poderiam muito bem ser resolvidos por mim.
— É sobre Álvaro Malta – despejou Lucinda antes que a coragem acabasse. — E também sobre a morte de Julieta, a empregada da mansão.

A fisionomia da mulher se alterou completamente.

— Um instante, por gentileza.

A mulher se levantou e entrou no Gabinete. Menos de um minuto depois ela retornou.

— Senhora Lucinda, por gentileza.

Lucinda chegou a levar um susto. Já não tinha esperança alguma que pudesse ser recebida por Henrique Malta. A secretária a aguardava segurando a porta do Gabinete para que Lucinda passasse. Tímida e preocupada com o que iria enfrentar, a jovem entrou na grande sala clara e de móveis sóbrios. Ao fundo, um homem moreno e muito parecido fisionomicamente com Álvaro a encarava com alguma curiosidade.

Imediatamente, depois de se deparar com tanta sofisticação, Lucinda se arrependeu de não ter colocado uma roupa melhor. Receou, além de tudo, parecer simples demais ante a riqueza do lugar e do homem sentado a sua frente.

— Bom dia – cumprimentou ele. A voz era firme e demonstrava não ter muito tempo a perder. Mesmo assim Henrique Malta parecia interessado no que ela tinha a dizer. — Sente-se, por favor.

Lucinda sentou agarrando-se a bolsa. Não sabia por onde começar. Deveria ter ensaiado alguma coisa antes.

— Bom dia – a voz dela saiu fraquinha. Péssimo para quem tinha tanta coisa importante.

Ele se inclinou para frente e encarou Lucinda.

— Minha secretária me disse que você quer falar comigo sobre meu irmão e sobre a moça chamada Julieta que trabalha, ou melhor, trabalhava na mansão.
— Isto mesmo – Lucinda respirou fundo. — Eu… eu acho que ela foi morta.
— Como? – Henrique arqueou uma das sobrancelhas.
— Eu estive na mansão ontem.

Ela não podia parar para pensar. Se isto acontecesse, daria meia volta e sairia correndo dali.

— Você esteve na mansão? – Henrique mostrou seu estranhamento. — Quem você conhece por lá?
— Na verdade, ninguém. Mas eu fui levada à força por João.

Henrique passou a se interessar mais pela história de Lucinda. Desde que o irmão morrera, só havia retornado uma vez na mansão para uma visita de condolências à cunhada. Nunca haviam se dado bem. Henrique considerara um erro aquele casamento e Álvaro lhe confidenciara dias antes de morrer que estava vivendo momentos difíceis com Marília.

— João, o capanga da minha cunhada. Por que ele fez isto?
— Fui vista duas vezes orando na sepultura do seu irmão, Doutor Henrique. Eu estava no velório e me surpreendi com a juventude dele. Fiquei impressionada, chocada. E voltei algumas vezes no túmulo do senhor Álvaro. João contou para Dona Marília e acho que ela não gostou.
— Ele tratou mal você?
— Sim – Lucinda ainda se sentia envergonhada. — Ele me colocou dentro de um carro ontem à tarde e fui levada até a mansão. Lá Dona Marília me acusou de ser amante do falecido.

Lucinda esperou que Henrique falasse alguma coisa, mas ele permaneceu calado. Ela respirou fundo e prosseguiu:

— Óbvio que eu neguei. Só conheci o senhor Álvaro dentro de um caixão. Quando nossa conversa acabou, ela mandou Julieta me levar até os portões. Foi quando Julieta me fez algumas revelações.
— Que revelações? – Henrique estava muito sério.
— Ela acusou Dona Marília de ter envenenado o marido. Na véspera da morte Julieta deu falta de um frasco de veneno. No outro dia seu Álvaro caiu morto. Nenhum dos empregados acreditou. Todos desconfiam que Dona Marília esteja de caso com o cavalariço.

A fisionomia de Henrique pouco se alterou. Lucinda esperava uma reação diferente. Algum tipo de reação pelo menos.

— Percebi que alguém estava nos observando pela janela do primeiro andar da mansão enquanto ela me contava tudo no jardim. Ela me pediu ajuda. Disse para que eu viesse até aqui contar tudo para o senhor. Foi o que eu fiz.

Henrique ficou em silêncio como se estivesse analisando tudo o que Lucinda dissera. Sentindo-se desconfortável, ela emendou:

— O senhor Álvaro tem aparecido para mim também. O espírito, eu quero dizer. Ele pede ajuda, está muito angustiado.

Ela esperou que Henrique Malta fizesse troça dela por revelar aquilo. Imagine, o fantasma do irmão vagando por aí e conversando com desconhecidos. Porém, ele ficou calado, ensimesmado nos seus pensamentos. Depois de algum tempo onde Lucinda não sabia se ia embora ou continuava sentada, finalmente escutou a voz dele.

— Obrigado por me contar isto tudo, Lucinda. Agora volte para casa. Fique um tempo sem sair. É bom que você não seja vista. Se puder, faça uma viagem.

Lucinda ficou assustada. Como assim? Viagem? Então estava correndo perigo? Ela levantou e estendeu a mão gelada para Henrique.

— Obrigada por me ouvir, Doutor Henrique.

Ela deu meia volta e saiu. Despediu-se da secretária, ansiosa por sair de lá e ir para casa. Lembrou da pedra que estilhaçara a vidraça da sala. Os moradores da mansão não estavam de brincadeira. Preocupada, Lucinda procurou um táxi para levá-la de volta. Caminhou um trecho da avenida olhando para os lados a procura de um. Se quisesse podia voltar à pé. Seria uma caminhada de uma hora, mais ou menos, o suficiente para espairecer. Mas sabendo o perigo que a rondava, não podia se dar a este luxo.

Depois de cinco minutos Lucinda achou melhor procurar uma parada de ônibus. Talvez tivesse mais sorte, quando passava algum táxi este já vinha ocupado. Sabia que na rua detrás, não tão movimentada, havia um ponto. Desejou não ficar tanto esperando um ônibus e que mais pessoas estivessem na parada com ela. Se sentia ansiosa para chegar em casa e começou a providenciar uma boa desculpa para não sair por alguns dias. Nunca imaginou que na sua cidade tão calma e de pessoas tão pacíficas, pudesse realmente correr risco de vida.


Lucinda se posicionou na parada de ônibus. Ela estava deserta àquela hora. Aquilo deixou a moça apreensiva. A rua era calma, com simpáticas casinhas. Um ou outro cachorro passeava por ali. Por onde olhasse, não havia vivalma por perto. O coração de Lucinda acelerou. Quando passou a considerar a hipótese de sair dali o quanto antes, um carro negro parou bem a sua frente.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

SOMENTE NOS MEUS SONHOS (Cap. 5)






Lucinda chegou em casa sentindo uma enorme dor de cabeça. Trancou-se no quarto com uma xícara de chá de camomila para se acalmar. Pobre Álvaro. Lágrimas vieram aos olhos dela. Que morte terrível tinha sofrido nas mãos daquela megera. Marilia ainda tivera coragem de acusa-la de ser a amante do marido. Era uma questão de honra atender ao pedido de Julieta e também de Álvaro. Em meio à angústia que tomava conta do seu coração, Lucinda tomou uma decisão. No dia seguinte iria procurar Henrique, o irmão de Álvaro. Ele precisava saber o que estava acontecendo na mansão antes que Marília tomasse conta de tudo.

Triste e sorvendo o chá em pequenos goles, Lucinda aproximou-se da janela. Grossas nuvens se aproximavam da região. Dentro em breve uma chuva forte iria cair sobre a cidade e Lucinda estremeceu. Esperava que não fosse um mau agouro.

*

Lucinda se viu envolvida em meio à bruma. Olhou para os lados, mas não conseguiu distinguir nada. Aos poucos a névoa foi se abrindo e ela pôde visualizar onde estava. Os portões da mansão surgiram altos e sólidos a sua frente e Lucinda estremeceu. Estava presa dentro daquele lugar pavoroso, onde Álvaro havia sido assassinado! Trêmula, Lucinda se dirigiu mesmo assim aos portões, segurou com força as grades e as sacudiu. Elas não se mexeram. O pânico tomou conta dela. A moça olhou para trás e pôde ver que Marília se aproximava segurando uma faca, lentamente e com um sorriso malvado nos lábios. O pavor aumentou. Lucinda olhou para cima. Os portões eram muito altos, bem como os muros. Jamais conseguiria escalá-los. Escutou os passos da sua algoz partindo as folhas secas caídas no chão à medida que chegava perto de Lucinda. Ela não teve coragem de olhar para trás. Viu um homem passando do lado de fora e tentou gritar. Sua voz, porém, saiu rouca, quase inaudível. Uma mão pesada pousou sobre o ombro dela e Lucinda se virou para ver quem era, encolhendo-se toda. Era Álvaro.

Lucinda sentiu a mão dele fria e rígida e seu olhar era tão doloroso que ela sentiu vontade de chorar. Álvaro não falou, mas Lucinda entendeu exatamente o que ele queria dizer:

— Não desista.

Ela acordou sobressaltada e com o coração saltando pela boca. Não havia sido um sonho, Lucinda sabia, enquanto se dirigia à cozinha para beber um copo de água. Ainda sentia a pressão da mão dele sobre o ombro e, apesar de toda a tragédia envolvida, Lucinda sentia um tipo de contentamento esquisito. Álvaro a escolhera para ajudá-lo.

*

Lucinda conseguiu dormir depois do sonho e despertou suando por volta das nove horas da manhã. Ela se levantou rapidamente. Tinha uma missão a cumprir e não podia mais adiar. Quando apareceu na cozinha para um café rápido, Dona Francisca exclamou:

— Finalmente! Eu já ia acordar você. Ué, aonde você vai? Morreu alguém?

Ela balançou a cabeça, negando. Estava tensa e sem muita vontade de conversar.

— Preciso resolver uma questão.
— Ih, você está muito misteriosa, viu? – a mãe serviu café na xícara preferida de Lucinda. — Espero que não esteja aprontando nada.

Lucinda bebeu um pequeno gole do café. Se a mãe soubesse aonde ela pretendia ir, teria um ataque do coração.

— Eu, mãe?

Neste momento Isabel entrou afobada em casa. Tinha ido à feira cedo e pelo visto chegara com novidades.

— Vocês não imaginam o que aconteceu!

Por algum motivo as pernas de Lucinda ficaram fracas. Em silêncio, esperou o que a irmã tinha para contar.

— Desembucha, criatura! – Dona Francisca não se aguentava de curiosidade. — Qual a fofocada da vez?
— Encontraram morta uma empregada da família Malta!

Lucinda resolveu sentar quando percebeu que poderia cair de joelhoes no piso frio da cozinha. As mãos tremiam e ela as escondeu para que nenhuma das duas reparasse no seu estado nervoso.

— Quem foi?
— Não sei quem é, mãe. Você sabe como são os Malta. Eles se enclausuram naquele castelo e ninguém sabe o que se passa lá dentro.

Com os olhos vidrados na irmã, Lucinda acompanhou cada palavra que a outra dizia.

— Mas o nome eu descobri. Julieta. Contaram na feira que a mulher desapareceu ontem de noite e hoje a encontraram boiando no rio há dois quilômetros da cidade.
— Puxa, que coisa horrível – murmurou Dona Francisca, chocada. — Será que a moça bebeu?

Isabel sacudiu os ombros. Também não fazia a menor ideia do que poderia ter acontecido.

— Ninguém sabe, mãe. O que acontece atrás daqueles muros é segredo. Veja você. O tal Álvaro Malta morreu do coração e ninguém nunca mais viu a viúva, nem para prestar condolências. É tudo muito esquisito o que acontece por lá. O que foi, Lucinda? Você está branca!

Ela tentou disfarçar. O cerco se fechava. Dentro em pouco seria ela a ser assassinada.

— Nada, não foi nada – Lucinda ficou em pé mesmo com as pernas bambas. — Notícia triste, não? Bem, mas eu preciso sair. Nos vemos mais tarde.


Lucinda saiu rápida de casa antes que viessem mais perguntas. O medo era grande e só não desistiu por Álvaro. Na calçada fez sinal para um táxi. Não tinha mais como voltar agora.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

SOMENTE NOS MEUS SONHOS (Cap. 4)




Ela foi levada até a biblioteca da bela casa e ali ficou sentada e observada pelos olhares ferozes de João. Menos de cinco minutos depois Marília chegou. O empregado se empertigou todo ao ver a patroa.

— Dona Marília, é esta a moça.

Ela fez um gesto para que o empregado saísse e de repente ambas se viram a sós. Depois de alguns segundos em um silêncio desconfortável, Marília finalmente perguntou:

— O que tanto você faz chorando no túmulo do meu amado esposo?

A voz da viúva era fria e seca, e Lucinda não soube o que responder.

— Gosto de visitar velórios e frequentar cemitérios também. Foi sem intenção alguma que apareci no velório do seu esposo e fiquei muito surpresa quando percebi o quanto era jovem.

Marília deu uma risada cínica.

— Que mentira idiota. A quem você pretende enganar?
— Não, Dona Marília! – Lucinda tentou se defender mesmo sabendo ser inútil. — É a mais pura verdade! Fiquei penalizada. Eu nem conhecia seu esposo.
— Me diga uma coisa. Você era amante do Álvaro?

A moça tomou um susto e empalideceu.

— Mas que pergunta descabida! Claro que não! Sequer o conheci em vida!
— Ele me amava muito! – explodiu Marília em lágrimas. — Não posso acreditar que fui traída!
— Não, Dona Marília! Isto nunca aconteceu! Apesar de os Malta serem conhecidos na região, nunca cruzei com o falecido!

Marília enxugou as lágrimas com um lenço de seda.

— Ele passou muitos anos fora estudando e quando voltou para assumir os negócios do meu sogro junto com o irmão acabamos por nos conhecer. Casamos muito rápido e… − ela soluçou. —… perdi meu amor mais rápido ainda.
— O que aconteceu realmente? – Lucinda desejava por demais conhecer os detalhes.
— Não sei. Talvez ele já estivesse doente e não contou nada para não me preocupar. Estávamos andando de bicicleta nos jardins da mansão quando ele caiu duro. Pensei que fosse somente uma brincadeira.

Ela fez uma pausa para chorar mais um pouco.

— Foi um ataque do coração? – Lucinda perguntou baixinho, tocada pelas palavras de Marília.
— Não foi possível identificar exatamente. Eu acredito que sim.

Lucinda olhou em volta. Aquela havia sido a casa de Álvaro. Talvez sua alma ainda vagasse pelos corredores.

— Coitado – Lucinda secou as lágrimas que teimavam escorrer pelo rosto. — Não havia jeito de salvá-lo?

Marília a encarou, enfurecida.

— Claro que não! Acha que deixaria meu marido morrer?

Lucinda silenciou. Queria ir embora o mais rápido possível da mansão. Esperava que depois daquela conversa a família Malta a deixasse em paz.

— Pare de ir ao túmulo do meu esposo. Reze por ele na sua casa.
— Desculpe – pediu Lucinda levantando-se ansiosa para sair dali. — Nunca tive a intenção de incomodar.
— Olhando bem para você – Marília a examinou de alto a baixo, — acho muito difícil que Álvaro possa ter se interessado por alguém do seu tipo.

Lucinda ficou tão surpresa com o comentário maldoso e grosseiro que não conseguiu responder. Marília foi até a porta da biblioteca e a abriu.

— Julieta!

Uma mulher mais velha que Lucinda apareceu quase na mesma hora.

— Pois não, senhora.
— Leve esta pessoa até o portão – Marília se voltou para Lucinda e se despediu secamente. — Passe bem.

Lucinda não respondeu e seguiu Julieta pelos jardins da mansão em silêncio, tensa com o encontro. Antes que alcançasse o portão, a empregada voltou-se para ela de repente e revelou, baixinho:

— Ela mentiu o tempo todo para você.

Lucinda chegou a piscar. Ainda dentro dos limites da casa ela sabia que todo cuidado era pouco.

— Como? O que foi que você disse?

Olhando rapidamente para os lados, Julieta aproximou-se um pouco mais de Lucinda, temerosa que a conversa pudesse ser ouvida.

— Escutei tudo através da porta. Dona Marília matou o Doutor Álvaro!

Foi como um golpe no estômago. Lucinda recuou dois passos, atordoada. O ar fugiu do seu rosto e ela precisou se apoiar em uma árvore próxima.

— Não é possível!
— Ela envenenou o esposo – Julieta tinha lágrimas nos olhos. — Percebi a falta do veneno na véspera do ocorrido, mas não dei maior importância. No outro dia meu patrãozinho morreu daquele jeito esquisito.
— Mas… por que ela faria isto?
— Dinheiro – Julieta transmitia as informações em tom de confidência. — A família de Dona Marília está completamente falida. Eles investiram em negócios que deram errado e o casamento com Doutor Álvaro foi por puro interesse. A bruxa nunca o amou.

Julieta estava bem nervosa e Lucinda mais ainda. Então era tudo fingimento desde o velório?

— Não pode ser. Você está segura disto?

A mulher assentiu com a cabeça.

— A ordinária está de romance com o cavalariço e o Doutor Álvaro estava bem desconfiado. Dois dias antes da morte dele o casal teve uma briga séria e nós, os empregados, suspeitamos que o casamento chegasse ao fim em breve. Mas nunca esperamos que ela fosse capaz de cometer um… um assassinato!

A imagem de Álvaro com a mão na garganta na ocasião em que ele aparecera no seu quarto esclarecia as coisas para Lucinda. Os olhos angustiados do homem nada mais eram do que um pedido de justiça.

Julieta prosseguiu:

— Acreditamos que ela deixará passar um tempo para poder casar com o cavalariço.
— Isto não pode ficar assim!
— Por favor, nos ajude. Procure o irmão do Doutor Álvaro, o senhor Henrique, e conte tudo!
— Eu não sei quem ele é. Jamais ele acreditará em mim!
— Estamos muito assustados! Tememos o que esta mulher pode fazer conosco. Por favor...

Lucinda percebeu uma cortina se movimentar no primeiro andar da mansão. Era hora de ir embora.

— Preciso voltar para casa. Prometo tentar fazer alguma coisa por vocês.


Ela apressou-se a sair daquele lugar. O ambiente era carregado demais.


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terça-feira, 20 de dezembro de 2016

SOMENTE NOS MEUS SONHOS (Cap. 3)



No outro dia pela manhã Lucinda mal conseguiu tomar o café direito. Escutou sua mãe jurar que ela havia falado durante algum sonho, mas não a moça não deu muita importância. E sem maiores explicações, Lucinda pegou a bolsa e saiu. Precisava ir até o cemitério. Temia que Álvaro não voltasse mais e precisava dizer a ele que estava pronta para ajudá-lo.

Lucinda ignorou o velório que estava acontecendo e foi direto à sepultura dele. A foto de Álvaro já estava posta na lápide e Lucinda confirmou o quanto ele havia sido belo.

— Por que você partiu, Álvaro? – ela suspirou de tristeza. — Meu Deus, por que não tive tempo de conhecê-lo?

Ela se ajoelhou no chão, arranhando os joelhos. Juntou as mãos em oração e fechou os olhos, implorando ser ouvida por Álvaro. Estava tão concentrada que não percebeu a aproximação de João.

— Você de novo aqui?

A voz ríspida do homem fez com que ela desse um pulo de susto.

— O que você tem a ver com isto?

Lucinda não gostou do jeito que João lhe encarava. Ele parecia ser um homem muito mau.

— Você não é da família. Que tanto vem aqui chorar o falecido?
— Não lhe interessa! – Lucinda recuou um pouco aterrorizada com a atitude dele. — Não tenho que dar explicações a ninguém!

João pôs a mão ameaçadoramente sobre o braço dela.

— Tem que dar explicações à família Malta. Dona Marília quer saber o que tanto você chora e reza aqui.

Homem linguarudo! Ele já tinha levado o assunto à viúva!

— Solte meu braço, seu mal educado! Como ousa tocar em uma mulher que você não conhece?

João não aliviou a pressão, pelo contrário. Deu um puxão violento na manga do vestido de Lucinda e rugiu:

— Venha comigo.

Desta vez Lucinda realmente sentiu medo. João a puxou mais uma vez querendo arrastá-la daquele lugar. Ela olhou desesperada para os lados. Estavam sozinhos, não havia ninguém para ajudá-la.

— Solte-me, seu monstro!
— Fale baixo, vagabunda!

Lucinda acertou um forte soco no rosto de João com o braço solto e um violento pontapé entre suas pernas. João dobrou-se em dois praguejando baixinho, enquanto Lucinda aproveitou a situação para sair correndo. Somente quando virou a esquina de casa que sossegou. Não, não estava sendo seguida. Aliviada, Lucinda sentiu as pernas trêmulas. Naquele dia não teve mais coragem de pôr os pés na rua.

*
Aconteceu um pouco antes das oito horas da noite. A mãe bordava na sala com as filhas e Lucinda estava na cozinha finalizando o jantar. De repente ela escutou um barulho forte e uma gritaria das mulheres. Ela correu até a sala, bem assustada. Isabel, uma das irmãs, segurava na mão uma pedra grande. Os vidros estavam estilhaçados. Ante o olhar apavorado de Lucinda, Isabel explicou com a voz trêmula:

— Alguém atirou aqui dentro.

Lucinda não conseguiu falar nada. Seus pensamentos eram os piores possíveis.  Dona Francisca apareceu com uma vassoura e uma pá.

— São estes moleques de rua. Os pais não dão mais limites, vejam vocês!

Lucinda deu meia volta e retornou para a cozinha. O corpo tremia e ela precisou tomar um chá de maracujá para se acalmar. Tinha certeza que aquela pedra fora arremessada com o intuito de amedrontá-la.

“Álvaro, o que está acontecendo?”

*

Por precaução, Lucinda não voltou mais ao cemitério naquela semana e o espectro de Álvaro também não apareceu. A mente de Lucinda era um turbilhão de dúvidas. Ele teria mesmo se manifestado? Não, não poderia tudo ter sido somente um sonho! As coisas estavam confusas. Volta e meia Lucinda sentia uma presença perto de si e quando se voltava para ver o que era, não havia ninguém por perto. Para completar a situação, a família Malta parecia disposta a encrencar.

Lucinda passava os dias inteiro se lembrando da visão que tivera de Álvaro pedindo ajuda. Suas noites de sono eram cada vez mais raras. Enquanto a família dormia, ela aguardava Álvaro voltar. Por vezes acordava mal acomodada na cama, tendo pegado no sono sem perceber. Mas quando a angústia era demais, Lucinda vagava pela casa como se o fantasma fosse ela. Felizmente mãe e irmãs nunca repararam nas andanças noturnas da moça.

Quando os ossos começarama saltar na pele, Dona Francisca comentou com as outras filhas que a caçula estava esquisita, talvez doente. Pouco se alimentava e quase não saía de casa. Nem aos velórios Lucinda ia mais. Houve um dia, contudo, que ela não suportou mais ficar longe de Álvaro. Tinha aguardado em vão longos quinze dias que ele voltasse e agora não ficaria mais um dia sequer sem a sua presença. Esperou até o final da tarde chegar para ir até o cemitério. Torcia para que João não estivesse por lá.

Foi com o coração aos pulos que Lucinda chegou ao local com um lenço na cabeça para disfarçar. Tomou a direção da sepultura de Álvaro, tendo o cuidado de olhar para os lados. Respirou aliviada. Aparentemente estava sozinha ali. A lápide estava repleta de flores vermelhas e brancas, indicando que João deveria fazer a manutenção todos os dias. Ao se aproximar, Lucinda sorriu como se Álvaro pudesse lhe ver. Quase pôde sentir a presença dele em meio às flores.

— Sinto você aqui, meu querido.

Lucinda não teve tempo de mais nada. Uma mão forte segurou com brusquidão seu cotovelo, fazendo com que ela gemesse de dor.

— Você de novo? Eu sabia que um dia eu a veria aqui outra vez.

A moça se contorceu, tentando se soltar desesperadamente. Mas João era muito mais forte, imobilizando-a de um jeito que qualquer movimento tornava tudo muito mais dolorido.

— Eu estava… somente passando…
— Mentira. Venha, Dona Marília está esperando você faz dias.
— O quê? – Lucinda ficou abismada. — O que você está dizendo?
— Cale a boca e venha comigo. Não ouse gritar. A família Malta é muito poderosa e você não é nada.


Lucinda foi levada aos tropeções até uma saída lateral do cemitério e posta dentro de um carro preto e com vidros escuros. Durante o trajeto ela não ousou falar nada. Aliás, mal respirava. Um motorista carrancudo dirigiu em boa velocidade até a mansão dos Malta, enquanto João ia sentado ao lado dela no banco de trás. Quando o carro cruzou os portões da mansão, Lucinda rezou para que saísse viva de lá.


sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

SOMENTE NOS MEUS SONHOS (Cap. 2)



Lucinda voltou ao cemitério no domingo trazendo nas mãos um lindo buquê. Encontrou um homem ajeitando as coroas e as flores do dia anterior. Quando ele a viu, fez uma expressão de surpresa, principalmente quando Lucinda depositou suas próprias flores em um lugar de destaque.

— Conheço você? É da família?

Ela não se deu ao trabalho de responder. Fechou os olhos, fez uma pequena oração para Álvaro e também para que o homem inoportuno fosse embora. Não deu certo. Ao abrir os olhos outra vez ele ainda estava ali, encarando-a com as mãos na cintura.

— Você quem é?

Lucinda fechou a cara e devolveu a pergunta:

— E você? Sempre vem aqui?
— Sou empregado da família Malta e encarregado para zelar pela sepultura do Doutor Álvaro. Meu nome é João.
— Prazer, João – ela gostaria de ficar mais tempo, mas com o homem por ali isto seria impraticável. — Eu já vou indo. Só quis prestar minha homenagem a este senhor.
— E nome você não tem?

Ela deu meia volta e foi embora sem olhar para trás. Não iria se prestar a satisfazer a curiosidade de um mero subalterno.

*

Naquele mesmo dia Dona Francisca se deu conta que Lucinda estava esquisita. Deixara mais da metade da comida no prato e recusara a sobremesa, um delicioso doce de abóbora. Uma das irmãs berrou:

— A Lu está apaixonada!

Lucinda não respondeu, limitando-se a remexer a comida que deixara no prato quase intocada. Como explicar que amava um desconhecido que somente conhecera morto?

— É o que dá frequentar velórios! – retrucou Dona Francisca. — Eu sabia que um dia você iria aparecer maluca!
— Não estou maluca e muito menos apaixonada. Só estou cansada. — Lucinda se levantou da mesa, bastante irritada. — Deixem-me em paz!

Ante os olhares espantados da família, Lucinda saiu rapidamente da mesa e se trancou no quarto. Usou o travesseiro para abafar o choro. Odiava Marília, ela não cuidara bem de Álvaro, permitindo que ele morresse tão jovem. Por que não conhecera Álvaro antes? Por que o destino tinha que ser tão cruel? E agora? Quando irei encontrar Álvaro novamente?

Lucinda não saiu mais do quarto naquele domingo. Quando o sono veio perto da madrugada, ela teve um sonho muito estranho.

*
— Lucinda...

Ela não despertou imediatamente. Revirou-se na cama e cobriu a cabeça com a coberta.

— Lucinda...

A moça rolou na cama e abriu os olhos. A luz do luar entrava pelas frestas da veneziana deixando o quarto na penumbra. Alguém chamara o nome dela? Ora, devia ter sido um sonho.

— Me ajude...

Um sussurro no ar fez o coração dela acelerar. Alguém a chamava, a voz ressoava pelo espaço e Lucinda não sabia dizer quem era. Curiosa, ela sentou na cama.

Havia um homem encostado junto à porta.

Lucinda segurou um grito e se encolheu toda, segurando o travesseiro ao encontro do peito. Não dava para ver direito quem era, a pouca luminosidade não permitia visualizar o rosto do estranho.

— Como você entrou aqui?

A voz de Lucinda saiu em um murmúrio. Ele não era um bandido. Pelas suas vestes era possível ver que era uma pessoa de posses.

— Preciso da sua ajuda.

Já acostumada com a escuridão, Lucinda começou a perceber alguns traços no rosto angustiado daquele homem. Os olhos tristes mostravam tanto sofrimento que partiu o coração da jovem.

— Álvaro! – Lucinda gritou baixinho, de puro susto, ainda sobre a cama. — É você mesmo?

Mas ele não respondeu. Continuou a fitá-la com os olhos tão desesperados que ela se obrigou a ficar em pé.

— Diga-me o que aconteceu – ela pediu à meia voz a alguns passos de distância dele. — Como posso ajudar você? Por favor, me diga!

Álvaro levou a mão até a garganta como se estivesse sofrendo de grande dor. Lágrimas escorreram pela face de Lucinda. Ela deu um passo à frente com a mão estendida para tocá-lo no exato momento em que uma luz acendeu no corredor e a voz de Dona Francisca se fez ouvir:

— Lucinda, você está sonhando? Acorde, menina!

O espectro de Álvaro desapareceu em um piscar de olhos ao mesmo tempo em que Lucinda se jogava na cama. A mãe abriu a porta segundos depois e encontrou a filha deitada sob as cobertas, aparentemente dormindo.

— Lucinda?

A moça permaneceu em silêncio, de olhos fechados. A senhora não insistiu e fechou a porta outra vez. Lucinda esperou tudo silenciar até abrir perceber que não havia mais perigo.

— Álvaro? Pode voltar agora – murmurou ela, ansiosa.

O pedido foi em vão.

— Por favor, volte. Diga-me como posso ajudar você.


Para infelicidade de Lucinda, Álvaro não retornou. Depois de chorar por alguns segundos, Lucinda lembrou que o fato de ele a ter procurado significava que poderia haver um vínculo entre ambos. Um elo que nem mesmo a morte fora capaz de destruir.