Desliguei a televisão antes da meia noite. Fechei as cortinas, atirei as revistas que inutilmente tentei ler para me distrair em cima da mesa e preparei-me para ir dormir.
Aliás, dormir não era bem o termo certo. Rolar na cama seria mais
apropriado. Há alguns dias meu sono impiedosamente havia me abandonado. Quando
eventualmente eu conseguia cerrar os olhos, os sonhos mais tenebrosos invadiam
minha mente.
Eu tinha perdido meu bebê há dez dias.
Meu marido não sabia do tamanho da minha dor e eu não pretendia me
fazer de vítima para ninguém. Precisava manter minha aura de mulher forte e
sofri em público durante dois dias. Depois, me fechei em mim mesma. Só eu
poderia viver aquele tipo de sofrimento.
Eu estava sozinha em casa. Uma viagem a negócios de última hora fez
com que meu marido pegasse um voo às sete horas da noite. Controlei o ímpeto de
pedir para que ele ficasse, porém calei-me. De repente vi-me abandonada em um
apartamento grande e subitamente vazio. Liguei a televisão no mais alto volume,
acendi todas as luzes da casa. Minha mãe me ligou antes das dez horas da noite
e perguntou como eu estava.
Tudo estava ótimo. Omiti que o vento lá fora me perturbava e que
precisava tão somente de algumas horas de sono. Desliguei o telefone e assisti
a quase duas horas de programas sem graça nenhuma. Troquei de canal a cada vez
que aparecia um bebê na tela.
Por fim, cansei de tudo. Lentamente fui apagando todas as luzes do
apartamento. Lá fora ainda ventava. A lua cheia iluminava meu quarto quando me
escondi debaixo das cobertas pesadas. Senti um pouco de sono. Talvez
conseguisse dormir algumas horas seguidas e acordar outra pessoa na manhã
seguinte.
Foi aquele
chorinho de bebê que me despertou exatamente às três horas da manhã. Até então
eu dormia bem, sem sobressaltos e sem sonhos. Vi-me de olhos arregalados
olhando para o teto. O luar ainda clareava meu quarto.
Silêncio.
Fiquei atenta
para qualquer som diferente. Talvez alguma vizinha tivesse algum bebezinho novo
ou fosse até mesmo um filhote de gato. O certo é que tudo estava silencioso. Lá
de cima eu não escutava sequer o barulho de uma buzina. Não era nada.
Acomodei-me novamente e fechei os olhos.
Aquele som.
Desta vez
sentei-me na cama imediatamente. Havia alguém – um bebê! – dentro da minha casa. Escutei
de novo. Meus cabelos na nuca se arrepiaram todos. O choro parecia ser de
alguma criança com poucos dias de vida. Estava próximo demais. Era pouco mais
de três horas da madrugada e um bebê chorava na minha sala.
Joguei as cobertas para o lado e saí do meu quarto. Eu precisava
atravessar o corredor para chegar até a sala e procurei o interruptor de luz. A
princípio não acreditei que eu estava sem luz em casa. A única luminosidade
vinha da lua e mesmo assim não resolvia muito. Fiquei tensa e meu coração
disparou. Aquele corredor escuro não parecia muito convidativo para atravessar.
E o chorinho continuava.
Respirei fundo. Alguma coisa estava acontecendo naquele apartamento.
Alguém estava brincando comigo. Senti medo, mas raiva também. Tateando as
paredes caminhei de pés descalços e sem fazer qualquer ruído até a sala.
Quando parei na entrada, o som cessou novamente.
Na semi-escuridão eu conseguia enxergar algumas coisas. O sofá, a mesa
de jantar, as estantes, o lustre. A sala era grande. Alguém podia estar
tentando se esconder atrás dos móveis ou das cortinas. Mas como alguém
conseguiu escalar dez andares sem ser visto?
Tentei novamente o interruptor de luz e nada. A cortina se mexeu.
Havia uma circulação de vento que entrava pela casa e fazia balançar meus
cabelos. Será que era isso que sacudia a cortina também? Lembrei que eu
guardava as velas dentro do balcão. Ajoelhei-me, procurando afobadamente por
elas dentro do móvel. Quando as encontrei, acendi a maior de todas. Algo passou
por trás de mim naquele momento. Dei um pulo e fiquei em pé, sufocando um
grito.
Pus a vela a minha frente, tentando me defender de algum ataque.
Contudo não havia ninguém. Ninguém que eu estivesse vendo. Ninguém desse mundo,
pelo menos. Pois junto à janela havia um vulto. Uma mulher. E ela trazia algo
nos braços.
Engoli em seco. Eu mal podia enxergá-la direito. Os cabelos compridos
também se balançavam ao sabor do vento. O vestido longo não disfarçava a
barriga de gravidez. No colo dela havia uma trouxinha. A mulher parecia estar
segurando um boneco.
Engoli em seco. O bebê chorou.
– Quem é você? – perguntei em pânico.
Minha voz, no entanto, mal saiu. Eu sentia minhas pernas bambas, sem
forças para dar um passo em direção à porta da frente. Queria pedir por
socorro, mas certamente ninguém iria acreditar que eu estava vendo uma mulher
na minha sala, grávida e segurando um bebê.
Mas e se fosse meu filho? Aquela mulher estava segurando meu filho nos braços. Sim, havia sido
ela que roubara o bebê de mim e agora estava ali, na minha sala, zombando da
minha cara.
– Devolva meu bebê.
Nada. Fui tomada de uma imensa raiva. Eu queria meu bebê de volta. A
mulher o roubara de mim. Agora eu estava entendendo tudo. Uma alma de outro
mundo levara meu filho e isso a medicina jamais conseguiria explicar.
– Eu quero meu bebê agora! – vociferei.
Sem saber como, avancei como uma leoa em direção à mulher, segurando a
vela com força. À medida que me aproximava, a raiva também me consumia e era
possível enxergar os traços da mulher que trazia meu bebê nos braços. Apenas
poucos passos nos separavam agora. A criança começou a chorar mais alto e um
forte vento entrou vindo de alguma janela escancarada. Coloquei a vela na mesa
e estiquei meus braços para alcançar meu filho.
O grito que eu dei atravessou os mundos. A luz voltou de repente e
vi-me frente a frente com uma mulher muito parecida comigo. Ela vestia um longo
vestido branco até os pés, sujo de sangue. A dor que trazia nos seus olhos era
muito parecida com aquela refletida pelo meu espelho todos os dias. Tentei
pegar a criança dela, mas a mulher a segurou fortemente. Eu não podia enxergar
o rostinho do bebê, uma fralda o encobria. Fiquei furiosa e atemorizada. Mas o
bebê era meu e não iria deixá-lo fugir de mim novamente.
Entramos em luta corporal. Grudei-me nos cabelos dela, ao mesmo tempo
em que ela parecia fazer o mesmo comigo. Apesar da luta, nem por um momento a
mulher soltou a criança. Eu sentia o hálito fétido dela no meu rosto e um
cheiro de queimado também. Meus gritos deveriam estar sendo ouvidos por toda a
vizinhança. No prédio ao lado as luzes começaram a ser acesas.
Gritos que já não eram mais os meus se faziam ouvir no corredor do meu
prédio, na porta do meu apartamento. Comecei a sentir calor e uma sensação de
queimação. Mesmo assim não interrompi a luta. A mulher cravou as unhas podres
no meu rosto e eu fiz o mesmo. Alguém meteu o pé na porta no exato momento que
ela se voltou para a janela, sorriu diabolicamente e jogou o bebê dez andares
para baixo. Fui salva um centésimo de segundo antes de me jogar atrás do meu
filho.
*
Acordei-me dois dias depois deitada em uma cama de hospital. Estava
com os braços enfaixados devido às queimaduras. Meu couro cabeludo doía. Um
vizinho havia me agarrado pelos cabelos evitando que eu saltasse atrás do meu
filho.
Meu filho?
Algumas cenas daquela noite pavorosa vieram a minha mente. E tudo
começou a ficar claro. Eu surtara. Enxerguei um vulto que era eu mesma. Lutei
contra mim na ânsia de trazer o bebê de volta. Nada daquilo havia acontecido.
Minha mente produzira imagens. Eu havia enlouquecido por poucos minutos e quase
havia me matado.
Meu marido se aproximou, abatido, da minha cama. Parecia que ele não
dormia há muito tempo.
– Como você está? – ele perguntou, passando a mão nos meus cabelos.
– Bem – e era verdade. Desde que tinha perdido a criança, era a
primeira vez que me sentia perto do meu normal.
– Bem mesmo?
– Claro, não estou mentindo.
– Por que você não contou que estava passando por problemas? – cobrou
ele. – Eu não teria viajado aquela noite.
– Desculpe, meu amor... Não pensei que eu estivesse tão mal. Acho… que
o estresse foi grande demais.
– O que aconteceu, afinal?
Contei toda a história sem omitir nenhum detalhe. Meu marido suspirou e pegou minhas mãos com força.
– Você quase botou fogo na casa. Em seguida quase se atirou
pela janela. Se não fosse pelo vizinho do lado, você teria se jogado de dez
andares. Isso não deve ficar assim. Você vai começar um tratamento psiquiátrico
assim que sair do hospital.
Concordei imediatamente. Aquele episódio me dava calafrios. Jamais
poderia imaginar que minha mente pudesse chegar tão longe. Jurei a mim mesma
que pediria ajuda caso algo semelhante acontecesse outra vez.
Passei o resto do dia bem. Alimentei-me normalmente e distrai-me com a
visita de amigos. Tentei ignorar a cara de espanto e algumas perguntas mais
inconvenientes. No outro dia eu daria alta e já estava planejando uma curta
viagem com meu marido. Era tudo o que eu precisava, disposta a iniciar uma nova
vida.
A noite chegou e com ela meu sono. Depois de conversar algum tempo com
meu marido, preparamo-nos ambos para dormir. Eu me sentia calma e sem dor. Para
minha felicidade dormi quase imediatamente. Acordei-me às três horas da manhã
com um choro de criança.
Sentei na cama, tal qual a outra noite. Só que desta vez foi pior. O
pânico parecia mais real. Meu parceiro dormia ferrado e não escutou meus
chamados. Lembrei-me que o quarto poderia estar localizado perto da maternidade
e fiquei mais aliviada. Porém, como o choro persistia, resolvi levantar-me para
tirar a dúvida.
Abri a porta do quarto. O posto das enfermeiras ficava um pouco
afastado. O choro cessou. Definitivamente a maternidade não era naquele andar. No
fim do corredor algo se mexeu. Fiquei com os olhos vidrados ao deparar-me com
aquele vulto vindo em minha direção.
Ele trajava um manto negro e trazia uma foice na mão.
Legal!
ResponderExcluirAs vezes tenho pequenos picos de surtos quando parece que falo com .eu eu interior e ele responde mas vou começar um psicólogo daqui a 2 semanas
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