As lágrimas
desciam pelo rosto misturadas à chuva. Clara conhecia bem o local. Quando era
feliz – sim, a vida lhe fizera feliz em algumas ocasiões – ela subira várias
vezes até o alto, iluminada pelo sol ou pelas estrelas, de mãos dadas com o seu
amor. Fora tão feliz naquele lugar que achou justo ser ali o ponto final de
tudo. E, quando seu corpo fosse levado pelas ondas, Clara flutuaria nelas por
algum tempo lembrando dos doces momentos que passara. E depois... bem, que
viesse a escuridão eterna.
O que
importava agora?
Clara levou
algum tempo para chegar até o alto e quando conseguiu o dia já tinha
amanhecido, embora cinzento. Mas seu destino estava logo ali adiante, onde o
morro de forma abrupta terminava. O temporal havia diminuído um pouco. Bastava
caminhar até o chão subitamente desaparecer. Então o sofrimento que despedaçava
seu coração finalmente teria um fim.
Ela
titubeou. Alguns segundos de hesitação debaixo da chuva fizeram com que Clara
piscasse e se perguntasse se era aquilo mesmo que queria. Planejara aquele
momento por semanas. A roupa, o cabelo, o horário. Só não contara com a tempestade,
mas, no final das contas, não era problema. Daria apenas mais dramaticidade
para o seu ato. Nos instantes que ficou ali próximo ao seu último salto,
imaginou, com alguma perversidade, o lamento dos parentes, amigos e conhecidos.
O que ele diria? Ah, esperava que ele ficasse com o coração tão dilacerado
quanto o dela e levasse para o resto da vida a culpa pela sua morte.
Faltava
pouco agora, disse Clara para si mesma, respirando fundo. Fechou os olhos e
abriu os braços, absorvendo toda a chuva. As mãos ardiam, os joelhos estavam
esfolados. O vestido comprado para aquela ocasião estava sujo e com lama na
barra.
— Adeus –
sussurrou ela desejando ardentemente que sua voz chegasse até os pensamentos dele e que, depois daquele dia, o
cretino nunca mais tivesse qualquer tipo de paz.
Clara deu um
passo à frente, decidida, agora de olhos abertos. Queria se ver caindo no mar,
espreitar as ondas vindo ao seu encontro, saber o exato momento em que o seu
corpo machucado afundaria na água. Talvez fosse rápido. Ela queria que fosse
rápido. Não sabia nadar e se ainda tinha o direito de pedir alguma coisa aos
céus era que sofresse menos do que estava sofrendo naquele momento.
Ela deu mais
um passo para frente e se equilibrou perigosamente na beira do penhasco. Os
braços ainda estavam abertos como se fosse alçar voo. Lá embaixo as ondas
batiam mais fortes nas pedras. A tempestade aumentara de um segundo para outro.
— Ninguém se
importou com meu sofrimento – murmurou ela com um soluço. — Pouco me importa
todos vocês agora.
Clara se
precipitou para frente no exato momento que alguém lhe agarrou com força pela
cintura. Ela soltou um grito e ouviu outro também, mais forte, ao mesmo tempo
que caía rolando pelo chão. As pernas ficaram balançando soltas no ar para o
lado de fora do morro e Clara quase não conseguia respirar. Um homem estava atravessado
sobre seu corpo, impedindo-a de se mexer, deliberadamente.
Era
inacreditável. A chuva castigava seu rosto. As costas doíam pela queda. Uma
névoa cobriu o alto do morro e Clara quase não conseguia distinguir quem a
salvara da morte.
— Você está maluca?
A voz dele saiu em um sussurro assustado, mas Clara não pôde
responder por estar mais apavorada ainda. Lentamente e com cuidado, o homem
saiu de cima dela e ficou ao seu lado, ajoelhado, observando-a. O vento
revolvia os cabelos dele enquanto a encarava, pasmo.
— Acho que estraguei os seus planos.
Clara pôs a mão no rosto e começou a chorar. De onde ele surgira?
Quem era aquele cara que dera fim ao seu longo planejamento? Graças a ele ainda
estava viva. Viva e sofrendo. Viva, sofrendo e machucada, tanto fisicamente
como psicologicamente. Clara se sentia a mulher mais azarada do mundo.
— Espero que você esteja chorando de agradecimento.
Ela continuou chorando. A névoa ia e vinha e os dois estavam
ensopados.
— Vamos sair daqui antes que a gente pegue uma pneumonia.
— Não me importo – Clara sussurrou aos prantos.
— Você não se importa com o quê?
— Vá embora você – ela cobriu o rosto e soluçou mais. — Me deixe
sozinha.
— Não – o homem balançou a cabeça e os cabelos loiros respingaram
água para todos os lados. — Vou levar você daqui.
Ele ficou em pé e estendeu a mão para Clara. Furiosa, ela olhou
para o outro lado, acintosamente.
— Já disse que vou ficar.
A névoa aumentou bem como a ventania. O homem não esperou por mais
nenhum lamento de Clara. Sem fazer muita força, ele a pôs de pé, apoiando-a
pelas costas. Clara deu um gritinho assustado. Ele não estava sendo bruto, mas
toda a sua determinação a surpreendia.
— Você está machucada – constatou ele reparando nos arranhões de
Clara. — Que mal o mundo lhe fez para você vir até aqui tentar fazer uma
besteira destas?
Clara não se sentia em condições de responder. Aliás, se sentia
ridícula também. Pela primeira vez, em semanas, todas as resoluções em pôr fim
a sua vida estavam agora estremecidas. Olhou para cima e conseguiu encarar o
seu salvador. Não queria responder. Tudo aquilo já era um constrangimento sem
fim.
— Talvez um dia eu conte a você – respondeu Clara com a voz
tremendo, sabendo que aquilo nunca iria acontecer.
— Tudo bem, fique à vontade. Me diga seu nome pelo menos.
Ela não respondeu. Assim que pudesse iria desaparecer daquele
lugar para sempre. Esperava também nunca mais ver o desconhecido que a conduzia
devagar morro abaixo, segurando-a com firmeza para que não resvalasse e saísse
rolando pelas pedras.
— Meu nome é Eduardo. Certo, eu respeito que você não queira se
identificar.
Clara optou pelo silêncio mais uma vez. Durante a descida, Eduardo
falou sozinho. Comentou sobre o tempo ruim, as ondas violentas e perguntou se
os machucados lhe doíam muito. Clara se acostumou a ficar calada, apenas
admirando a voz musical dele, a conversa leve de quem era de bem com a vida, o
sorriso fácil mesmo no meio daquela confusão. Teve vontade de lhe contar a
verdade, que chegara de madrugada em meio ao temporal e deixara o carro em uma
ruazinha próxima. Não havia trazido bagagem, pois para onde pretendia ir não
precisaria disso. Mas achou melhor não dizer nada. Para quê? Provavelmente ele,
em uma roda de amigos, diria que salvara uma doida de se atirar do morro, o
nome dela era Clara e havia tentado se matar por ter levado um pé na bunda do
noivo. Não. Era demais para quem já andava com o amor próprio tão abalado.
Quando eles chegaram ao pé do morro, Eduardo propôs:
— Eu moro aqui perto. Você precisa se secar, tomar um chá quente.
Descansar.
— Eu… eu preciso ir.
— Para onde? – Eduardo parecia preocupado. — Se eu deixar você
aqui, quem garante que não voltará para terminar o que tinha começado?
A chuva havia amainado e de repente aquela ideia do suicídio lhe
pareceu a maior idiotice do mundo.
— Não vou mais fazer isto – garantiu ela olhando firme nos olhos
negros dele e percebendo toda sua enorme desconfiança. — Eu juro.
“Mas... se eu for embora... sei que não te verei nunca mais.”
— Não confio em você. Afinal, mal nos conhecemos, não é mesmo? –
ele sorriu outra vez e Clara se deu conta que seu coração acelerava. — Você
sequer me diz seu nome!
Ela sorriu levemente, envergonhada. Era bom estar junto a ele,
aconchegada nos seus braços. Era bom também se sentir viva quando por algum
tempo se sentiu tão morta.
— Ah, você está aí.
A voz aguda e um pouco irritada de uma mulher quebrou o clima de
quase encantamento que Clara estava começando a experimentar. Uma moça mais
jovem que Clara e portando uma sombrinha amarela enorme encarava os dois
querendo explicações. Seu olhar furioso encarava o casal.
Eduardo
demonstrou não se abalar pela presença dela.
—
Bom dia, amor – respondeu ele sem soltar Clara. — Carol, esta é a… Bem, esta
moça estava correndo perigo no alto do morro. E eu... eu a salvei.
A
expressão da moça suavizou um pouco, mas mesmo assim Clara não escapou do olhar
analítico dela. A jovem era linda, com longos cabelos loiros caindo cacheados
pelas costas. O contraste com a aparência de Clara era gritante e sem querer,
ela estremeceu. Eduardo percebeu e achou que fosse frio.
— Vamos levá-la para casa. Ela está com
frio.
Os
olhos da outra se estreitaram.
—
Você nem sabe quem ela é.
Clara
se sentiu mal com aquela discussão. Nossa. A única coisa que queria há quinze
minutos atrás era se matar. Agora o que mais desejava no mundo era estar a
quilômetros de distância. A vergonha era grande, mas a pressão das mãos fortes
de Eduardo nas suas costas era maior. A verdade é que não queria se soltar
dele. Porém, não podia ficar mais ali também.
—
Carol, pare com isto. A moça está passando por dificuldades.
A
muito custo, Clara se desprendeu de Eduardo. Deu dois passos para o lado e
quando tentou falar, a voz ainda saiu tremida.
—
Obrigada... obrigada por tudo. Eu realmente preciso ir embora.
Carol
a olhou, aliviada. Depois tornou a encarar Eduardo.
—
Ela está bem. Você está legal, não é mesmo, moça?
Clara
balançou a cabeça, fazendo que sim. A chuva parara finalmente e ela sabia que o
carro estava a apenas dois quarteirões de distância. Bastava apenas caminhar
até lá e desaparecer daquele lugar para não voltar nunca mais. Quando chegasse
em casa, já seca e talvez com algum resfriado, a primeira coisa que iria fazer
era agendar um horário com um especialista. E nunca mais falar sobre o seu
quase suicídio com ninguém.
Eduardo
voltou seus olhos para Clara, mas quando iria falar alguma coisa, soltou um
espirro. De cara amarrada, Carol se aproximou dele, ralhando:
—
Vamos para casa – ela pôs a mão sobre o braço dele. — Você vai pegar um gripão.
Venha, você precisa de um banho quente e de um chá queimando.
— Espere – Eduardo se virou para
Clara que continuava no mesmo lugar observando o casal. — Você também está molhada.
Olhe suas mãos, elas estão machucadas! Vamos até nossa casa pelo menos para
tirar este barro do seu corpo.
Carol suspirou, aborrecida.
— Edu, para quê insistir? Ela quer
voltar para casa. Não é isto que você quer?
Clara não respondeu. Deu meia volta,
segurando a barra do vestido para não arrastar no chão. Ele já estava sujo o
suficiente. Sentindo o olhar quente de Eduardo nas suas costas, Clara seguiu
pela rua deserta, dobrou a primeira esquina e caminhou lentamente para onde
havia deixado seu carro, abalada com seu comportamento e sua fraqueza. Envergonhada,
jurou para si mesma que nunca contaria sobre aquilo com ninguém. E mesmo que
seu coração batesse mais quando lembrava dos olhos doces de Eduardo, pediu aos
céus para que nunca mais seus caminhos se cruzassem outra vez.