Larissa pegou a mão de Mel e saíram escondidas da
aula de Educação Física. Faltava pouco para terminar o turno e já anoitecia. As
duas odiavam fazer qualquer tipo de exercício.
Mel quase caiu no corredor deserto da escola quando
ambas fizeram a curva correndo. Lá no fundo ficavam os banheiros.
— Preciso retocar o batom – Larissa riu do tombo que Mel quase
levou. — O Rodriguinho já deve estar lá na frente.
— Não era mais
fácil você arrumar um namorado da mesma escola?
— Tenho culpa
se o cara mais gato do Brasil gosta de mim e estuda do outro lado da cidade?
Ah, amiga, ele é um amor...
Mel olhou para
frente. Já estavam perto dos banheiros, mas, aparentemente, não havia mais
ninguém por ali.
— Nossa –
comentou Larissa. — Cadê todo mundo?
— Estão matando
aula. Tipo nós.
— Estranho.
O banheiro
feminino estava vazio. Mel empurrou a porta com um pé e as duas amigas entraram
rindo, despreocupadas. Uma menina de cabelos loiros estava agachada em um dos
cantos. Vestia uma roupa branca, solta no corpo e escondia o rosto entre os
joelhos. Larissa puxou Mel para trás assim que se deparou com a moça.
— Mel, olha...
Mel estacou no
mesmo instante, assustada. Nenhuma das três garotas falou qualquer coisa,
contudo era palpável a tensão que pairava no ar. Larissa olhou para Mel e
perguntou, baixinho:
— Quem é?
— Sei lá – a
resposta foi no mesmo tom.
A garota
desconhecida se mexeu. Primeiro os pés, depois as mãos. Lari e Mel sequer
respiravam. Assombradas, viram quando a garota levantou a cabeça, devagar, e as
encarou. O rosto pálido ao extremo, os olhos fundos, uma expressão de tristeza
imensa.
Mel foi a
primeira a dar o berro:
— É a Clau! A
suicida do banheiro.
Na desesperada
tentativa de sair do lugar o mais rápido possível, as duas amigas se embolaram
e caíram no chão. Mel torceu o pé e Larissa, em pânico, tentou levantar a
amiga.
— Depressa,
Mel!
Clau ficou em
pé sem nunca tirar os olhos das duas. Mel berrou, desesperada, se agarrando nas
pernas de Larissa. As luzes do banheiro começaram a piscar.
— Ai, meu
Deus! – Larissa gemeu. — É a Clau mesmo! Aquela que se matou enforcada por
causa do Leandro!
Clau deu dois
passos para frente. Uma porta bateu ao longe. Larissa envolveu Mel pela cintura
e a arrastou para o lado de fora do banheiro. As luzes do corredor piscavam sem
parar. Um vento soprou vindo do nada.
— Ela vai nos
matar, Lari!
Mel pulava em
um pé só agarrada na amiga, ambas já no corredor. Nenhuma tinha coragem de
olhar para trás.
— Será que era
a Clau? – a voz de Larissa tremeu.
— Claro que
era. Eu me lembro dela antes de...
Mel preferiu
não completar a frase.
— Que droga –
Larissa praguejou. — Não tem ninguém nas salas. Ninguém para nos salvar. Parece
que não vamos nunca alcançar o pátio.
— E se ela
matou todo mundo?
Larissa se
perturbou com a pergunta de Mel e tropeçou. Desequilibrada, caiu no chão
levando junto a amiga. Lá no fundo do corredor, na porta do banheiro, Clau as
observava. Mel se moveu sentada no chão recuando alguns centímetros.
— Ela vai nos
alcançar. Nunca mais vou conseguir me levantar daqui.
Larissa ficou
em pé e toda ela tremia. Esticou a mão para a amiga.
— Isto não
pode estar acontecendo. Vem, Mel, fica em pé de uma vez.
— O que vocês
duas estão fazendo aqui?
A diretora da
escola estava parada a poucos metros dela. Mel e Larissa estremeceram. Seria
possível que a mulher não estivesse enxergando Clau no fundo do corredor?
— Diretora, só
fomos ao banheiro – Mel tentou se desculpar.
— E o que você
está fazendo no chão?
Mel balbuciou:
— Torci o pé
fugindo da Clau.
— De quem?
A diretora
colocou as mãos na cintura. Sua expressão ficou ainda pior.
— Da Clau –
Larissa suspirou. Sem olhar para trás, com medo, apontou na direção dos
banheiros.
Com os olhos,
a diretora seguiu o dedo de Larissa e olhou para o fundo do corredor.
— Você pensa
que sou alguma idiota?
Mel segurou o
ar. Não sabia o que era pior. Enfrentar a diretora ou o fantasma de uma menina
suicida.
— Não, por
favor!
— Vocês
falaram... Clau?
Larissa
respirou fundo e olhou para trás. Não havia ninguém defronte a porta dos
banheiros. Tudo parecia muito normal.
— Eu posso
explicar...
—Vocês não
deviam estar na aula de Educação Física?
— Eu torci o
pé – argumentou Mel com um fiapo de voz.
— Vou chamar o
monitor para me ajudar com vocês duas. Já faz três anos que esta menina morreu.
Esqueçam.
A mulher se
afastou. Lari e Mel permaneceram no mesmo lugar, quase sem se mexerem.
— Lari, olha
pra trás.
— Eu? Não
tenho coragem.
— E se nós
estivermos imaginando coisas?
Devagar, as
duas garotas voltaram o pescoço na direção do banheiro. Clau continuava lá.
*
— E por que
vocês acham que o Leandro vai dar a mínima para isto? Eles nem estavam mais
juntos.
Mel olhou de
canto para Larissa. Ambas estavam na praça de alimentação de um shopping
sentadas frente à Fabi, irmã do ex-namorado da Clau.
— Ora, amiga –
Mel controlou a vontade de acertar um soco naquela garota pedante. — Todo mundo
sabe que a Clau fez o que fez por ter visto seu irmão se agarrando com a
Verônica.
— A culpa
nunca foi dele – Fabi foi dura. — A Clau não teve estrutura para suportar vê-lo
com outra e resolveu se matar. Bem, acho que ele deveria ter sido mais
discreto.
— Mas não foi
– Larissa devolveu no mesmo tom. — Agora Clau fica vagando pela escola. Uma
alma perdida.
— Para não
dizer penada – arrematou Mel.
Fabi tomou um
gole do suco de maracujá e encarou as duas amigas, curiosa.
— Então é
sério que a Clau vagueia pela escola? Quando eu saí de lá já ouvia essa
história. Mas nunca acreditei que fosse real.
— Nem nós –
Mel se arrepiou só de lembrar a cena pavorosa. — O fato é que nós a vimos.
— Vocês não
estão delirando? Vocês disseram que a Diretora não viu nada.
— Na verdade a
Clau só aparece para quem quer – Larissa olhou para Fabi espantada com tão
pouca empatia. — Talvez pense que nós podemos ajudar.
— Não sabia
que vocês eram íntimas da louca da Clau.
— E não somos
– Mel suspirou sem paciência.
— Então por
que ela surgiu para vocês? Meninas, vocês não tinham cheirado nada, não é?
Larissa
segurou firme o braço cheio de pulseiras da Fabi.
— O que
estamos contando é a mais pura verdade.
Fabi puxou o
pulso com alguma brusquidão.
— Vocês querem
que eu faça exatamente o quê?
— Peça para
seu irmão vir falar conosco – Mel encarou Fabi. — Ele poderá nos entender
melhor do que você.
*
Apesar de as
meninas duvidarem que Leandro fosse dar alguma importância a elas, o rapaz
ligou naquela mesma noite para Mel. Rápida, ela colocou o telefone no viva-voz
para que Lari pudesse escutar também.
— Oi, Mel – a
voz dele não estava das melhores. — Minha irmã disse que vocês precisam falar
comigo.
— Olá,
Leandro. Maravilha você ter ligado. Achei que você não gostaria de tocar no...
assunto.
— Certo. Qual
é o problema?
Mel e Larissa
se entreolharam. Era nítido que Leandro não estava disposto a se prolongar.
— Nós, eu e a
Lari, vimos a Clau anteontem.
Silêncio do
outro lado da linha. Depois de alguns segundos ele perguntou:
— Viram quem?
— A Clau.
— Ela morreu.
— Sim. Nós
sabemos disso. Mas… como eu disse, ela apareceu para nós.
Foi ouvido um
suspiro de impaciência e Mel achou que ele fosse desligar.
— Vai começar
esta história de novo? Já estou farto disso. Cansei de ouvir relatos que Clau
anda circulando por aí.
— Mais
precisamente no banheiro feminino da escola, Leandro. Foi assustador o que eu e
a Lari presenciamos.
— Muito bem. E
vocês querem que eu faça o quê? Acenda uma vela para Clau?
Larissa abriu
a boca, espantada. Não podia acreditar que Leandro fosse tão grosso.
— Escute aqui,
Leandro… – começou Mel.
— Eu não sei
se a Clau está vagando por aí. Não acredito nesse tipo de coisa. Sinto muito
que tudo tenha acontecido daquela forma, mas não tenho culpa – novamente ele
perguntou. — O que vocês querem que eu faça?
— Achamos que
seria interessante você ir até a escola. Talvez ela precise falar com você.
Leandro riu um
pouco irritado.
— Não
acredito. Vocês acham mesmo que eu vou conseguir algum contato sobrenatural com
ela?
— Ora, se nós
conseguimos...
— Tudo bem. Eu
vou até a escola para acabar com esta palhaçada de uma vez. Quando posso ir?
*
Uma semana
depois, durante a mesma aula de educação física. As garotas escapuliram durante
alguns exercícios e foram ao encontro de Leandro. Ele estava frente à
biblioteca. Acompanhado.
De longe, Mel
avistou os cabelos ruivos de Verônica. E declarou:
— Precisava
ele trazer o motivo da Clau não descansar em paz?
Verônica era
uma jovem alta e bonita. Formavam um belo casal. Quando pararam em frente aos
dois, Mel se sentiu uma idiota. E se a Clau não aparecesse?
— Então,
meninas – Leandro parecia constrangido. — Vamos brincar de caça-fantasmas?
Nenhuma das
duas riu. Verônica tentou emendar:
— Leandro me
contou que a Clau apareceu para vocês... É sério isto?
— Muito sério
– Mel foi firme. — Estamos preocupadas porque o fato da Clau estar vagando por
aqui é sinal que sua alma não descansou até hoje.
— Bem, a culpa
não é minha – declarou Verônica. — Aliás, sinto muito por ela. Eu nem sabia que
a Clau e Leandro tinham namorado quando ficamos juntos pela primeira vez.
— Certo. Mas
vamos ao que interessa – Larissa interrompeu a ladainha. — Temos que aproveitar
que as turmas estão na aula de Educação Física no pátio.
O corredor
estava vazio. Ao longe, a porta dos banheiros se destacava. Leandro perguntou:
— Foi lá que
vocês a viram? – ele fez um sinal com a cabeça.
— Exatamente –
Mel deu um cutucão nele. — Vamos logo antes que a Diretora apareça e estrague
tudo.
Os quatro
foram em direção ao banheiro, em silêncio. Verônica apertou firme a mão do
namorado. Aquela era uma situação tão esquisita. Desde que começaram a namorar
ela era bombardeada com indiretas, mensagens cifradas e pessoas falando
abertamente sobre o suicídio de Clau. Era duro de aguentar. E agora as duas
garotas vinham com uma história bizarra da Clau no banheiro. Os boatos de que a
jovem circulava pela escola eram inúmeros, mas nunca haviam ido tão longe.
À medida que
se aproximavam, contudo, Verônica começou a sentir um mal-estar. As mãos
gelaram e um suor frio escorreu pelo meio das costas. O estômago doeu e
Verônica sentiu vontade de parar onde estava.
Leandro não
percebeu o desconforto da namorada e seguiu em frente, os olhos fixos na porta.
Não havia acreditado nem um pouco nas meninas, mas elas foram tão insistentes
que ele resolveu topar a parada para encerrar o assunto. Mas... por que à
medida que se aproximava sentia os pelos da nuca ficarem em pé? A porta do
banheiro estava cada vez mais perto. As luzes estavam apagadas. Olhou de
soslaio para Lari e Mel. Pálidas, e de mãos dadas, pareciam à beira de um surto.
Não se ouvia barulho nenhum, nem mesmo as vozes dos alunos fazendo educação
física lá fora.
Leandro parou
frente à porta e as três meninas logo atrás dele. Ninguém falou e, como não
queria passar por medroso, comentou:
— No meu tempo
as luzes do banheiro ficavam acesas.
Respirando
fundo, deu um passo à frente e achou o interruptor sem entrar no banheiro.
Iluminada a peça, Leandro se encorajou. Deu um passo para o interior e fez uma
rápida inspeção com o olhar.
Vazio e
inofensivo. Ele sentiu vontade de rir e se virou para as meninas.
— Então,
garotas. Não tem nada aqui.
Verônica, Lari
e Mel arregalaram os olhos e, sem perceber, se juntaram umas às outras. Leandro
prosseguiu:
— Não tem
fantasma nenhum.
Verônica
recuou um passo, tão pálida que Leandro achou que ela fosse morrer. Caiu
sentada no chão com a boca aberta querendo gritar, mas sem sair um único som.
Larissa se grudou mais ainda em Mel e ambas deram um grito que reverberou na
escola inteira. Leandro, então, se voltou, brusco para trás. Clau, com sua
expressão fantasmagórica, encarava-o de muito perto. Leandro pensou em gritar,
mas aí já era tarde demais. As três meninas testemunharam quando a porta do
banheiro se fechou com um estrondo. Larissa se voltou e tentou puxar Verônica
pela manga da blusa.
— Levanta,
Verônica! Temos que sair daqui!
— Leandro –
gemeu ela ao mesmo tempo em que uma vidraça do corredor explodiu. — Alguém tem
que tirá-lo do banheiro!
Lari, Mel e
Verônica saíram em disparada, tropeçando e se batendo umas nas outras. A barulheira
atraiu dois monitores no início do corredor. A gritaria era grande. Verônica
caiu de novo.
— Vocês precisam
ajudar o Leandro! – berrou Mel. — A Clau o prendeu lá dentro!
— Clau? – um
deles perguntou. — A suicida do banheiro?
Os homens se
precipitaram em direção ao local enquanto as meninas se amontoaram em uma das
paredes. Aos poucos gente começou a chegar. Professores, alunos, diretora.
Todos parados no meio do corredor assistindo os monitores tentar arrombar a
porta. O único som que se ouvia era das batidas violentas. A diretora estava
pálida e Verônica prestes a desmaiar. De repente, lá pela décima pedalada, a
porta voou para trás. Alguém gritou.
Dentro do
banheiro somente a escuridão. A diretora caminhou, em silêncio, até os
monitores. Eles pareciam consternados. Tensa, a mulher olhou para dentro.
Leandro, deitado no chão frio, fitava o espaço com os olhos arregalados.
*
Um dia depois
o laudo do médico legista atestou enfarte fulminante. E Clau nunca mais
apareceu na escola.
Nenhum comentário:
Postar um comentário