Meu
nome é Milton, tenho 40 anos de vida e mais da metade dela só de estrada.
Explico: sou caminhoneiro. Herdei a profissão do meu falecido pai. Comecei na
boléia aos 15, peguei no volante aos 18 e nunca mais larguei este mundo. No
início, antes de eu casar, tudo era festa. Agora, com mulher e filhos, fica
cada vez mais complicado andar por estas estradas, sujeito a assaltos e outras
coisas mais. Se vê cada coisa estranha.…E o que vou contar agora para vocês é
algo muito, mas muito estranho mesmo.
Aconteceu
há mais ou menos um ano. Fiquei parado seis meses devido a um rompimento nos
tendões, resultado de uma partida de futebol. Foram seis meses que se não fosse
minha mulher pôr comida dentro de casa, passaríamos fome. Bem, finalmente fui
liberado para pegar a estrada. Confesso que estava com um pouco de saudade.
Tinha perdido contato com meus amigos caminhoneiros. A gente sente falta das
conversas, das risadas, dos causos. A minha primeira viagem de retorno era pra
longe. Mas eu não tinha escolha, né? Peguei minha carga e botei os pés na
estrada.
Tudo
transcorreu bem na primeira noite. Encontrei alguns amigos e dormi em um posto
de gasolina. No dia seguinte, nada aconteceu de anormal. O caminhão estava
legal, o dia bonito e as estradas daquele jeito que todo mundo sabe. Lá pelas
nove horas da noite me bateu fome. E cansaço também. Parei em um posto de beira
de estrada, simples. Não havia nenhum outro caminhão. Pedi um sanduíche e um
refrigerante e fiquei ali, comendo sozinho, lembrando que uns cinqüenta quilômetros
adiante havia um posto maior, onde eu poderia dormir com mais segurança e,
certamente, haveria outros colegas para pôr os causos em dia. Quando eu já
estava mordendo meu último pedaço de sanduíche, alguém apareceu na minha frente
e se sentou, sem pedir licença.
Levei
um susto. O restaurante estava praticamente vazio. Era eu e o proprietário, um
senhor sonolento que escutava um radinho, no caixa. Para minha surpresa, eu
conhecia a pessoa que sentou ali comigo. Era a Susana, irmã do meu amigo e
colega, Roberto.
— Susana! Puxa, você me deu um susto! Como
você está? Já casou?
Eu
estava realmente satisfeito de ver Susana. Aquela moça deveria ter uns 20 anos.
Eu a tinha visto nascer e crescer. Sempre fôra muito bonita. Mas naquela noite
ela estava estranha. Os cabelos caiam soltos pelo vestido branco e ela não
mostrava seu habitual sorriso.
— Quero que você me faça um favor – pediu
ela, com a voz profunda.
Fiquei
cabreiro. Aquela voz… Nem parecia ela. Reparei que havia um ferimento no seu
pescoço, disfarçado pelos cabelos compridos. Respondi, meio sem jeito:
— Claro. O que você quiser… Está sozinha?
— Toma – disse ela, estendendo-me alguma
coisa e sem responder minha pergunta — Leve para o Roberto e diga para ele
entregar para o André.
Nas
minhas mãos foi depositado um belo crucifixo de prata, com pedrinhas
brilhantes. Lembrei que André era o noivo de Susana. Olhei de novo para a moça, que me fitava
intensamente. Eu teria que desviar o caminho, isto atrasaria minha viagem, mas
eu não consegui recusar o pedido feito por aqueles olhos negros e tristes. Sim,
os olhos dela estavam muito tristes.
— Sim, está bem. Você espera um pouco? – pedi
eu — Vou pagar a conta.
Levantei
e fui até o caixa me acertar. Fiz tudo bem rápido, mas quando eu me virei para
ir ao encontro de Susana, ela havia ido embora. Fiquei chateado. Saí correndo
até o lado de fora do restaurante para tentar alcançá-la, mas não havia sequer
um sinal que fosse da menina. Bem, Roberto talvez pudesse me explicar alguma
coisa. Entrei no caminhão, ainda intrigado, dirigi mais alguns quilômetros e
encontrei o posto onde dormi até às seis horas da manhã. E de novo peguei a
estrada, com o crucifixo de Susana brilhando no espelho interno do caminhão.
Próximo
ao meio-dia, cheguei na casa de Roberto, depois de desviar por uma estrada que
aumentou meu trajeto em 30 quilômetros. Felizmente, meu amigo estava em casa. A
esposa havia ganho bebê e ele estava dando uma força. Roberto ficou feliz ao me
ver. Ele me convidou para entrar, mas eu recusei para não atrasar mais. Depois
de conversamos algumas amenidades, resolvi ir direto ao assunto:
— Roberto, na verdade vim até aqui para lhe
entregar uma coisa – e tirei do bolso o crucifixo.
Quando
meu amigo se deparou com a jóia, ficou muito pálido. Segurando-o firmemente,
ele me perguntou:
— É de Susana! Onde você conseguiu isto?
Não
sei o motivo, mas eu comecei a ficar nervoso.
— Com a própria Susana. Ontem eu parei em um
posto de gasolina na beira da estrada e quando estava no final do meu lanche,
ela apareceu e pediu que eu lhe entregasse isto. E que você levasse o crucifixo
até o André. É o noivo dela, não é? Eles romperam?
Roberto
estava tão branco que pensei que fosse desmaiar. E minhas mãos começaram a suar.
— Milton… ─ ele respirou fundo — Meu cunhado
deu de presente este crucifixo para Susana. Uma semana antes do casamento, dois
rapazes a assaltaram e arrancaram a correntinha do pescoço da minha irmã. O
ferimento foi tão grande que ela morreu de tanto sangrar.
Aí
quem quase teve um troço fui eu. Não era possível. Eu fiquei apavorado. Cheguei
a estontear.
— Mas era… era ela – tentei dizer.
— Você tem certeza? – Roberto tremia com o
crucifixo entre os dedos.
— Claro, claro que sim! Ela sentou a minha
frente! Fiz perguntas que ela não respondeu! E reparei que Susana tinha um
ferimento no pescoço e que disfarçava com os cabelos.
— Como estava vestida?
— De branco – respondi, sentindo-me enjoado.
— Ela foi enterrada de branco…
Não
sei mais o que eu disse. Fiquei em pânico. Despedi-me rapidamente do meu amigo
e entrei no caminhão. Não sei como consegui dirigir aquele dia e nos outros. Quando
anoitecia, eu me refugiava em postos onde havia bastantes caminhoneiros. Eu me
recusava a ficar sozinho. Não tive coragem de contar esta história para
ninguém, a não ser para minha mulher que, felizmente, não disse que eu estava
ficando louco. Um dia destes, uma moça de branco e cabelos compridos entrou no
restaurante em que eu estava com outros colegas, à noite. Levei um susto, quase
me engasguei. Mas não era Susana. Aquela moça estava bem viva e feliz. E no seu
pescoço brilhava um lindo crucifixo de pedras brilhantes.
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