VOCÊ PARTE, SOU UM ICEBERG
OUÇO TUA VOZ, SOU NOITE ESTRELADA
VOCÊ ME TOCA, SOU UM VULCÃO
terça-feira, 27 de outubro de 2015
sábado, 17 de outubro de 2015
VALENTINA, A GATA
Daqui enxergo o mundo. Já vi coisas que deixaram meus pelos amarelos
eriçados. Hoje, no entanto, não me surpreendo com mais nada. Pelo contrário,
acho tudo tão engraçado. Esses humanos, no fundo, me divertem.
Gosto de ficar aqui no telhado, quando o sol ainda não está quente. Fico
sentadinha, vendo o mundo passar, longe da minha dona chata. Por que as pessoas
não entendem que os gatos são diferentes dos cachorros? Eu gosto de passear
sozinha, não preciso de ninguém para ficar caminhando junto comigo. Minha dona,
aquela boba, deve ter me confundido com um cachorro assim que me tirou da
companhia da minha mãe e dos meus irmãos. Onde já se viu gato com coleira? Miei
tanto, fiz um escarcéu sem tamanho, e ela se viu obrigada a arrancar aquele
troço antes que eu me enforcasse. Mesmo assim, ela insiste em colocar aquele
maldito lacinho cor de rosa na minha cabeça. Claro, ele não sobrevive a um dia
inteiro das minhas andanças. Às vezes tenho vontade de dizer para ela: Me esqueça!
Mas sabe, ela faz umas comidinhas gostosas para mim. Será que existe alguém que
saiba fazer um pedaço de carne tão gostoso igual ao que ela me faz? Minha dona
é chata, mas cozinha bem. Eu não gosto de rações para gatos.
Humm... mas eu sou fascinada é
pelo namorado dela. No começo ele não me dava bola. Mas eu me insinuei tanto,
me esfreguei tanto nas suas pernas peludas que acabei por conquistá-lo. Aliás,
eu sou uma conquistadora nata. Ai, ele é um gato de duas pernas! O lindo me
adora. Daqui do telhado, vejo quando ele chega. Eu saio correndo, entro pela
janela, pela área, por qualquer lugar e já me posiciono na porta. Ouço-o
subindo as escadas, sinto o cheiro do seu perfume. Minha dona fica meio
enciumada, mas a gata aqui sou eu. Depois que eles se beijam, o namorado
dela me pega no colo, me acaricia, até já me beijou no focinho! São nestas
ocasiões que eu gostaria de ter duas pernas. Certamente minha dona já o teria
perdido para mim.
Ruim mesmo é quando chove. Argh, eu tenho horror a água. Aí não tem
jeito. É ficar em casa, enroladinha, esperando a chuva passar. É um saco! Minha
dona fica toda hora me colocando no colo dela, mas eu não fico ali nem um
segundo. Que coisa, me deixa em paz. Tenho vontade de dizer a ela que vá
comprar um cachorro. Ou vá fazer um filho.
Ontem o gato da vizinha veio aqui em casa me namorar. É um gatão branco,
peludo, de pedigree. Claro que ele entrou escondido, o sem vergonha. Que felino
bonito... acho que estou ficando apaixonada, logo eu, imagine só. Mas não tem
como resistir àqueles olhos amarelo-esverdeados, o ronronar sedutor. Ele sabe
como tratar uma gatinha. E eu que me achava tão esperta, fui cair nas suas
armadilhas. Se minha dona sabe, corre com o peludo daqui.
Daqui do telhado enxergo o mundo, o meu mundo. Ele é tão grande e às
vezes pequeno demais. Mas chegará o dia em que vou criar coragem de transpor os
muros e conhecer outras paisagens. E depois, será que vou querer voltar?
quinta-feira, 15 de outubro de 2015
CLAUDIOMIRO, O CARA
Claudiomiro, ou melhor, Cacau, tinha 18 anos quando estourou no universo
futebolístico. A sequência de gols que empilhou no juvenil do time sem
expressão que atuava logo chamou a atenção dos dirigentes. Em pouco tempo já
jogava na equipe principal. E, no ano seguinte, seus passes, dribles e jogadas
geniais levaram Cacau a ser contratado por um dos maiores times do Rio de
Janeiro.
A fama chegou rápida e trouxe de arrasto mulheres de todas as faixas
etárias. Cacau encheu o corpo de tatuagens imitando seus outros colegas de
profissão e inventou um penteado maluco copiado por 10 entre 10 garotos. Ele
era o tal.
Sua presença desencadeava gritos histéricos de hordas de adolescentes em
surto sexual. Capas de revistas, casinhos amorosos sem compromisso, treinos e
jogos. Esta era a vida do Claudiomiro. Suelen se apaixonou perdidamente por ele.
Suelen, vinda da periferia, bonitinha, loira de farmácia, ensandecida de amor
pelo astro em ascensão.
Suelen trocou de time de coração para torcer por seu ídolo. Sentada e
uniformizada frente à TV durante as partidas, ela assistia a tudo, menos
futebol. Impedimento? Como assim? Os olhos não desgrudavam da camisa suada
dele, das penas compridas e musculosas, do abdômen tanquinho. Era um homem e
tanto, e com apenas 19 anos! A parede do quarto da Suelen não tinha mais espaço
para tanto pôster do Cacau. Na semana anterior havia rolado no chão com uma
garota da escola depois que a outra afirmou em alto e bom som que Suelen era
muito chinelona para namorá-lo. Depois do barraco, Suelen voltou para casa
orgulhosa de ter quebrado dois dentes da rival. Pena que o Cacau morava longe
da sua cidade, distante muitos quilômetros de onde Suelen vivia. Ela tinha uma
certeza, porém. No dia que Cacau pusesse os olhos nela, se apaixonaria no mesmo
instante, perdidamente. E a partir daí ambos viveria um conto de fadas.
Quando o time do Cacau veio jogar na cidade da Suelen, ela simplesmente
enlouqueceu. Foi no primeiro tatuador que encontrou e pediu que ele tatuasse
“Forever Cacau” no antebraço, grande, em letras pretas. Depois convocou algumas
amigas também fãs do moço e foram todas para a frente do hotel onde o time
estava concentrado, com cartazes, faixas e muita gritaria. Tanto esforço valeu
uma entrevista em rede nacional, onde Suelen apareceu se debulhando em
lágrimas, mostrando a tatuagem feita em homenagem ao ídolo e declarando que o
amava mais que a si mesma. Ao contrário do que pensava, aquilo não foi o
bastante para que alguém a pusesse frente a frente com Cacau. A única coisa que
restou foi Suelen ir ao jogo e ficar se esgoelando na geral, durante os 90
minutos, pelo nome do astro. O time dele perdeu, mas naquele dia Suelen voltou
para casa com trocentas fotos no celular, muito emocionada. Havia visto seu
futuro marido de perto. E então, a partir desse momento, começou a planejar uma
viagem para se encontrar com ele. Ninguém poderia saber. Era segredo. O plano
era sair de casa durante a madrugada e pegar um ônibus para o Rio de Janeiro.
Daria um jeito de conhecê-lo e deixá-lo perdido de amor. Suelen confiava no seu
taco.
Um anúncio mal feito colado em um poste dizia que Madame Anunciação traz
seu amor de volta em três dias. Suelen pegou o pouco que sobrou da sua bolsa de
estágio e marcou uma hora com a cartomante. Só queria que ela confirmasse o que
já sabia: que Cacau muito em breve seria todinho seu.
Madame Anunciação lhe atendeu em um ambiente perfumado, com um lenço na
cabeça e uma bela bola de cristal na frente. Suelen, constrangida e nervosa,
logo contou o motivo da sua visita. Falou até demais. Revelou que acompanhava a
vida de Cacau desde o início da carreira dele, que o quarto era tomado por
fotos e posters gigantes e que tinha certeza que um dia iriam casar. Só queria
uma confirmação antes de pegar o ônibus fugida para o Rio. Mostrou a tatuagem e
a intenção que tinha de fazer outra por dentro do lábio.
Olhando atentamente para a bola de cristal feita de vidro, Madame
Anunciação segurou o riso com esforço. Mais uma trouxa. Precisava manter o foco
e não se trair. Não fazia meia hora havia visto em vários sites de notícias,
fotos de Cacau com sua nova namorada, uma dançarina peituda e bunduda, loira e
bonitona, ambos abraçados, jurando amor eterno. E ali estava aquela moça,
sentada a sua frente, sonhando em casar com outro deslumbrado pela fama,
possivelmente um ignorante que tivera a sorte de se dar bem no futebol. Que
Deus lhe desse juízo suficiente para conseguir aprender algo com a fama, tão efêmera e tão cruel. E que fizesse grana
de uma vez.
A vidente – que nunca foi vidente – fechou os olhos procurando as
melhores palavras. Quando encarou novamente a mocinha, disparou de uma vez só:
— Você nunca ficará com ele. Não está escrito em lugar nenhum do
universo que vocês se encontrarão um dia.
Suelen tomou um susto. Empalideceu, balbuciou, tentou argumentar alguma
coisa. Com lágrimas nos olhos, Suelen pagou o que devia e saiu atordoada dali.
Não era possível, dizia ela para si mesma, pensando na grana guardada dentro da
caixinha para a viagem que pretendia empreender tão breve. Cacau não será meu,
ele não será meu...
Cega pelas lágrimas, Suelen atravessou a avenida sem olhar para os
lados. Não deu tempo de o ônibus frear.
sábado, 3 de outubro de 2015
FIM DE PAPO
Ele conduzia o carro pela estrada cheia de curvas,
encrustada na serra. A paisagem era bonita, o sol iluminava a vegetação, um dia
perfeito para um passeio com uma boa companhia. Mas ele estava sozinho. Quer
dizer, Tatiana estava ao seu lado, de olhos fechados, presa no cinto de
segurança. Não era uma boa companhia a Tatiana.
Ela estava morta.
Quem ultrapassava o carro de Breno e se prestasse para
reparar quem era o passageiro não veria mais que uma moça bonita em sono
profundo. A echarpe preta, comprada em Paris em uma viagem romântica um ano
antes, escondia o corte profundo da garganta de Tatiana. Breno sorriu. Não
havia sido difícil matar a esposa. Ela sempre fora de estatura pequena, frágil.
O problema fora matar o Ricardo. O cara era forte, cheio de músculos, boa
pinta. A boa estampa certamente atraíra Tatiana, cansada dele, Breno. Cara
chato, sem grana e barrigudo com quem tinha casado há 3 anos. Breno um dia fora
um pedaço de mau caminho. Depois relaxou. Engordou, ficou careca e, não demorou
muito, corno também.
Bem, Ricardo estava morto. Foi preciso três pancadas na
cabeça dele com uma pá para dar fim naquele traste. O corpo ainda estava no
apartamento de Breno na cidade, esperando para ser desovado em algum lugar ermo
durante a madrugada. A preocupação de Breno agora era se livrar da puta.
O homem pegou uma estrada secundária sem asfalto e que jogava
terra por todos os lados. Ele conhecia muito bem aquele lugar. Havia ido várias
vezes com a Tati passear por ali, admirar o vale e a natureza exuberante. A
esposa adorava aquele lugar, por isto Breno escolheu que ali seria um bom lugar
para deixar seu ex-amor. Aliás, ela não merecia mais que um lixão. Mas, puxa...
a infeliz estava morta. Era só jogar o corpo despenhadeiro abaixo e tudo estava
acabado.
Ele parou o carro na beira da estrada. Era raro qualquer
veículo transitar por ali. Fumando e aparentando calma, Breno abriu a porta do
carona, pegou Tatiana no colo e sem dificuldade a carregou até a beira do
penhasco. Antes de jogá-la, deu uma tragada funda no cigarro e o apagou no
chão. Olhou para Tati, beijou-a na testa e no momento seguinte a projetou no
ar. Fechou os olhos para escutar melhor o som do corpo batendo nas pedras e galhos
de árvores. Depois, silêncio.
Fim de papo.
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