Quinta-feira era dia de feira. Um dos meus dias preferidos,
aliás. Mais ou menos pelas quatro horas da tarde eu saía de casa com meu
carrinho de compras. Voltava uma hora e meia depois com verduras e frutas,
sabendo das novidades de São José da Serra pelas minhas conhecidas e com algum
chazinho marcado geralmente para a tarde de sábado, quando o Jorge saía para
jogar futebol com os amigos.
Naquele dia
não foi diferente. Percorri as ruas calmas da cidade trazendo meu carrinho
cor-de-rosa lotado. A vantagem de morar em uma cidade pequena é conhecer todo
mundo. Sempre fui muito popular e várias vezes tive meu nome lembrado para
concorrer a uma vaga na Câmara dos Vereadores. Até me interessei, mas o meu
maridão tratou logo de cortar minhas asinhas. Ciumento, o Jorge sempre gostou
que eu vivesse só para ele. Não tivemos filhos, portanto minha vida era o
JORGE! Éramos casados há 25 anos (hoje eu tenho 52) e tive pouquíssimos
namorados antes dele. Mesmo não tendo uma vida profissional, eu sempre gostei
muito da minha vida de dona de casa. Arrumar o lar, deixá-lo perfumado e fazer
uma comidinha especial para o meu marido era tudo de bom. Eu sabia que tinha
gente que me invejava. Que culpa tinha eu de ser feliz?
Duas quadras
antes de dobrar na rua que levaria a minha casa, deparei-me com uma novidade em
São José da Serra. Uma academia. Anteriormente o local por muito tempo abrigara
uma ferragem. Era um galpão grande que ficara vazio já há uns três anos quando
o seu Carlos faleceu e rolou a maior briga na família por causa da herança.
Agora finalmente alguém estava dando uma utilidade para o lugar. Fiquei curiosa.
Havia uma movimentação na frente. Operários, caçamba para colocar o lixo, vozes
altas. Aproximei-me de devagar puxando o carrinho no lado oposto da calçada. Chamou-me
atenção um rapaz forte, bem apessoado e que parecia o chefe. Os cabelos dele
eram compridos, batiam no ombro. Uau, um tipo diferente em São José da Serra!
Finalmente! Notei que uma faixa branca e com letras vermelhas anunciava:
EM BREVE ACADEMIA.
Uma academia
nova! E pelo jeito seria das boas. Até tentei frequentar uma há alguns meses.
Mas além de o Jorge ficar possuído, os aparelhos estavam caindo aos pedaços.
Pelo visto, esta nova academia iria bombar.
Porém, o que
estava realmente me chamando atenção era o mestre de obras, o cabeludo fortão.
Nossa, ele era bonito mesmo, hein? Como eu nunca o vira por aqui? Endireitei os
ombros, encolhi a barriga e soltei os cabelos. O carrinho atulhado de coisa não
me deixava muito sexy, mas era o que eu tinha para o momento. Ensaiei um
sorriso para caso ele olhasse para o lado e comecei a dizer mentalmente:
“Olha pra mim, olha pra mim, olha pra mim.”.
Quem disse
que pensamento positivo não dá certo? O bonitão olhou e deu de cara comigo
encarando-o fixamente. Educado, ele me cumprimentou com um aceno de cabeça e eu
sorri mais abertamente ainda. Até esqueci-me do Jorge. Ora, que mal tem? Eu só
cumprimentei o vizinho novo ou seja lá o que fosse aquele cara. Pena que não
passou daquilo. Fiquei com o sorriso congelado no rosto esperando um segundo
olhar que não houve. Droga. Talvez minha amiga Angelina soubesse de alguma
coisa. Anotei mentalmente que deveria ligar para ela logo ao chegar em casa.
*
Logo que
dobrei a esquina da minha rua calma e arborizada visualizei o carro do Jorge
estacionado na garagem. Eram cerca de cinco e meia da tarde. Ele costumava
chegar em torno deste horário e a primeira coisa que fazia era ligar a TV e
tomar um cafezinho. Então eu ia para a cozinha e começava a preparar o jantar
dele. Tudo simples, mas eu adorava aquela rotina. Lembrei que na noite anterior
o Jorge pediu para que eu fizesse uma mousse de chocolate. Sempre adorei fazer
doce e comia junto, parelho com ele.
Abri a porta
e achei que encontraria o Jorge comodamente sentado no sofá com o controle
remoto na mão, assistindo a todos os canais ao mesmo tempo. Para minha surpresa
só encontrei o silêncio.
— Jorge! Cheguei!
Talvez
estivesse no banho. Parei no meio da sala, aguçando os ouvidos. O chuveiro não
estava ligado. Sacudi os ombros levando o carrinho para a cozinha. Talvez
estivesse no quintal ou ido à casa de um algum amigo. Jorge era muito bem
relacionado.
Entrei na
cozinha e lá estava ele. Sentado de costas para mim, com as mãos apoiada sobre
a mesa.
— Ah, você está aí? Não ouviu eu
lhe chamar?
Passei
reto por ele e abri a torneira. Peguei os tomates e coloquei dentro da pia.
Esperei que meu marido falasse alguma coisa, porém ele continuou mudo.
Voltei-me para ele. Jorge estava de cabeça baixa. Parecia cochilar. Estranho...
— Ué... Trabalhou demais hoje?
Aproximei-me
dele sacudindo as mãos no ar para enxugar a água que escorria. Toquei de leve
no ombro de Jorge. Ele detestava ter seu sono interrompido fosse o motivo que
fosse.
Ele não se
mexeu.
— Bebeu, seu malandro?
Nada.
Dei um cutucão mais forte. Jorge, então, deslizou da cadeira direto para o
piso. Eu dei um berro que foi escutado do outro lado da rua. Estendido no assoalho, Jorge me
encarava com os olhos arregalados. Olhos que não viam mais nada.