— Não vi você no enterro – disse ela entrando no quarto e fechando a porta.
Francesca respirou fundo. Sentiu medo. Magda não parecia nem um pouco
enlutada. Sua voz era firme.
— Fiquei um pouco mais para trás – explicou a jovem, ciente de que a
mulher já tinha visto suas malas no canto do quarto.
— Você pretendia partir? Sem falar comigo?
— Não quis incomodar a senhora com este assunto – mentiu ela. — Iria
entrar em contato mais tarde.
— Você não pode partir.
Francesca chegou a piscar. Não entendeu direito o que Magda queria dizer
com aquilo.
— Como?
Magda se aproximou mais um pouco.
— Você pensa que sairá desta casa depois de ter descoberto o corpo do meu
pai?
— O corpo… era mesmo de Gregório? – a voz de Francesca saiu estrangulada.
— Quem contou para a senhora?
A outra riu. Sua risada foi simplesmente diabólica.
— Em poucos dias você desvendou um mistério de 40 anos. Quando as coisas
estavam literalmente mortas e enterradas, você chegou aqui com seu jeitinho de
sonsa e descobriu tudo.
Francesca empalideceu.
— Dona Magda, não sei o que descobri. Não tive intenção nenhuma de
bagunçar tudo. Gregório apareceu nos meus sonhos sem que eu pudesse impedir.
— Ah, você podia impedir, sim. Era só manter sua linda boquinha fechada.
E olhe o que você fez! Foi abrir a boca para minha mãe!
— Só fiz o que me pareceu certo naquele momento! – Francesca tentou se
defender. — Dona Laura só falava no marido.
— Ah, o santo marido! – Magda deu outra risada, desta vez com sarcasmo. —
O lindo marido de Dona Laura. Foi bom ela ter morrido, sabe? Assim não
descobriu o sem vergonha que ele era!
— Meu Deus, Dona Magda! – Francesca recuou dois passos quando Magda
avançou mais um pouco. — Mal cheguei aqui. Não sei nada da vida do seu pai.
Mesmo Dona Laura me falou pouca coisa sobre ele. Na verdade, eu quero ir embora
deste lugar o quanto antes e esquecer tudo.
— Você não vai a lugar nenhum – a voz de Magda saiu assustadoramente
baixa. — Pensa que irá embora levando consigo um segredo deste tamanho?
— Jamais contarei que os ossos de Gregório foram encontrados ao lado do
poço – a voz de Francesca tremeu. — Não me interessa esta história.
— Sei muito bem o que você vai fazer – Magda encarou Francesca com seus
olhos de louca. — Vai chegar na sua cidade e contar sua aventurazinha. E logo
meu nome será levado à mídia e isto me destruirá. Ora, mocinha! Eu sou
poderosa! Não é uma ninguém como você que irá me destruir!
— Pelo amor de Deus, Dona Magda! Eu jamais faria isto! Por favor, eu juro
que nunca contarei a ninguém sobre os fatos que presenciei nesta mansão – Francesca
consultou o relógio. — Agora preciso ir. Vou perder meu ônibus.
Francesca quase gritou quando viu um punhal na mão esquerda de Magda. A
lâmina brilhou sob a luz da lâmpada. A visão da jovem ficou turva por alguns
segundos.
— Você não irá a lugar nenhum. Aliás, vou enterrar você no mesmo lugar
que enterrei meu pai. E ninguém nunca dará falta de uma chinelona como você.
Branca de susto, Francesca perguntou, trêmula:
— Enterrou seu pai? O que é isto?
— Aquele monstro! – os lábios de Magda tremeram por alguns instantes. —
Ele abusou de mim por anos e ninguém nunca fez nada! Ela – Magda se referiu
claramente à mãe — nunca fez nada para me salvar das garras dele. Como você
acha que deveria ter sido o seu fim?
Francesca, estonteada ante tantas informações bombásticas, apoiou-se na
cômoda. Em um primeiro momento achou que Magda estivesse mentindo. Mas a raiva
da mulher era quase palpável. Ela tremia segurando o punhal com toda a sua
força.
— Sinto muito, Dona Magda. Jamais poderia adivinhar que seu pai...
— Ele me pegou enquanto eu brincava com minhas bonecas no jardim – Magda
relembrou, baixando um pouco a mão que estava com o punhal. — Eu estava
distraída, era um belo dia de sol. De repente aquele homem se agigantou a minha
frente e, como todas as outras vezes, arrancou minhas roupas.
A jovem escutava o relato, tensa. Senão fosse toda a emoção contida nas
palavras e na fisionomia de Magda, ela poderia até não acreditar nas coisas
horríveis que saiam da boca da mulher.
— Eu já estava cansada de ser abusada e esconder meus machucados. Naquele
dia, em um momento de distração dele, peguei uma pá e atingi a cabeça do
desgraçado. Não sei quantas vezes, eu não enxergava nada mais a minha frente.
Quando me dei conta, pensa que me arrependi? Nunca. Tratei de abrir um buraco e
enterrar o maldito lá dentro. Fiz tudo sozinha. Faria de novo, se fosse
preciso.
— Eu jamais poderia... Dona Magda, sinto tanto pelo seu sofrimento.
— Não sente nada! – estrebuchou ela. — Você esteve ao lado da minha mãe,
ela que sabia sobre as maldades que aquele homem cometia contra mim. Você
sonhou com ele! Qual a conexão que você e o maldito tinham a ponto de ele
aparecer nos seus sonhos?
— Como eu posso saber? – perguntou Francesca, desesperada. — Não pude
controlar. Ele apareceu nos meus sonhos naturalmente!
— Você merece morrer! – Magda estrebuchou. — Devem ter sido íntimos em
outras vidas. Por isto ele a procurou!
Uma batida na porta fez com que Magda se calasse. Em seguida, a voz
gentil de Sofia se fez ouvir:
— Francesca, está tudo bem?
— Está tudo bem, Sofia – Magda respondeu com a voz em seu tom normal. —
Estou conversando com Francesca.
Silêncio do outro lado. Quando se voltou novamente para Francesca, Magda
murmurou, avançando sobre ela.
— Não ouse gritar.
Francesca desviou do golpe no último momento, tropeçando nas malas e
caindo sobre elas. Quando percebeu que havia errado o alvo, Magda ficou mais
furiosa ainda.
— Vou matar você e enterrar no mesmo lugar que ele.
A jovem se levantou rapidamente, quase sem pensar. Porém, as pernas não
lhe ajudavam e ela caiu outra vez. Antes que Magda a alcançasse, Francesca
conseguiu se levantar. Pôs uma perna frente à outra para manter o equilíbrio
precário quando Magda avançou segurando o punhal.
Francesca, rápida, deu uma rasteira em Magda, que caiu de joelhos no
chão. O punhal saltou longe, próximo à porta. Foi neste momento que Sofia
resolveu entrar no quarto para ver o que estava acontecendo.
— Fran! O que é isto?
— Chame a polícia! – implorou Francesca, segundos antes de ser derrubada
por Magda.
Sofia segurou o punhal e saiu correndo do quarto. Enquanto seus passos em
fuga eram ouvidos do quarto, Magda montou sobre Francesca e apertou-lhe o
pescoço. Além da falta de ar, a dor era grande. Pontos negros surgiram frente
aos seus olhos e ela sabia que não iria demorar muito até perder os sentidos. Magda
sentiu os dedos de Francesca no meio dos seus olhos, deu um grito pavoroso e
soltou momentaneamente o pescoço da outra. Francesca aproveitou o momento para
lhe desferir um potente murro no nariz.
Magda tombou para o lado e arregalou os olhos quando viu o sangue nas
suas mãos. Francesca ficou em pé, lutando para sugar o ar. Podia ainda sentir
os dedos de Magda no pescoço. Do chão, mas ainda pronta para continuar lutando,
Magda berrou:
— Você vai pagar por este sangue aqui!
Francesca mal teve tempo de se recuperar. No momento seguinte, Magda já
estava atracada com ela, em uma luta corporal terrível. Novamente, Magda tentou
segurar Francesca pelo pescoço. Desta vez, a moça foi mais rápida e lhe
desferiu um potente joelhaço no estômago. Com um grito, Magda se dobrou em
duas. Francesca ficou no mesmo lugar, recuperando o fôlego e sentindo dores
pelo corpo. Não sentia forças nas pernas para sair correndo do quarto e pedir
ajuda aos colegas.
— Vou matar você.
A ameaça veio em um sussurro terrível dos lábios de Magda. O sangue lhe
escorria pelo rosto e na sua mão agora havia uma tesoura, possivelmente pega de
cima da cômoda. Os olhos de Francesca se arregalaram. O objeto era grande e
pontiagudo. Um único golpe seria o bastante para abatê-la.
Antes que Magda fizesse qualquer movimento, Francesca reparou no vaso de
cerâmica a poucos passos de si. Certa vez Dona Laura lhe dissera que Gregório
havia lhe dado de presente de aniversário de casamento. Tirando forças de onde
não tinha, Francesca segurou o vaso de bom tamanho e jogou sobre Magda. Sua
única intenção era atrapalhar seus movimentos para que ela própria conseguisse
tempo suficiente para sair do quarto. Contudo, a força empregada por Francesca
surpreendeu-a. O vaso atingiu em cheio o peito de Magda, fazendo a tesoura voar
longe. Surpresa e desequilibrada, Magda foi jogada para trás. Francesca deu um
grito quando viu a mulher atravessar a janela aberta e caindo no vazio. O grito
de Magda foi agudo e forte e depois de uma pancada surda, o silêncio.
Francesca ficou parada no meio do quarto, aturdida e zonza. Dois segundos
depois Sofia retornou acompanhada de dois empregados.
— Fran, onde está Dona Magda?
— No jardim. Eu a matei.