O dia passou calmamente,
apesar do péssimo humor de Mauro. O homem nem se olhava mais no espelho por
causa dos arranhões no rosto. Carol providenciou um medicamento para os
ferimentos não infeccionarem. Ainda assim Mauro não resistiu a um convite para
ir jogar futebol com os amigos no fim da tarde. Carol, contrariada, assistiu o
marido calçar as chuteiras, vestir o uniforme e sair faceiro porta afora.
Cansada dos afazeres do dia, Carol deitou no sofá para dar uma olhadinha na
novela. Nem se deu conta quando pegou no sono.
Vinte minutos depois Carol despertou com um som estranho. Já
era noite e soprava um vento forte. Sentada no sofá, ela apurou os ouvidos. Só
se escutava as vozes da TV ligada e mais nada. Mesmo assim ficou inquieta.
Faltava ainda um bom tempo para Mauro voltar do futebol. Carol resolveu não dar
bola para o caso e se levantou para ir até a cozinha pegar um copo de água.
Um miado profundo e rouco vindo do lado de fora a fez dar um
pulo. Com o susto o copo caiu das suas mãos e se espatifou no chão ao mesmo
tempo em que a moça, com a mão sobre o peito, tentava conter as batidas do
coração. O que era aquilo, afinal? Um… gato?
O silêncio retornou à cozinha e, trêmula, Carol pegou a
vassoura para limpar os cacos. Aos poucos ela foi se acalmando. Podia ter sido
qualquer outra coisa, inclusive sua imaginação abalada. Era melhor voltar a ver
a novela. Ela juntou os estilhaços, enrolou em uma folha de jornal e abriu a
porta para colocar na lata de lixo lá fora, no pátio.
O grito que Carol deu foi ouvido longe. Dois olhos
brilhantes a fitavam no escuro do pátio. Carol não enxergou mais nada além
disso. Somente os olhos, aquelas duas bolitas esverdeadas e frias que pareciam
prestes a atacar Carol a qualquer momento.
Carol fechou a porta com tanta força que ela bateu e voltou
a abrir outra vez. A porta só se fechou de verdade quando Carol se jogou sobre
ela temendo que o animal invadisse a casa e a atacasse.
Passando mal, ofegante e quase sem poder caminhar por causa
das pernas bambas, Carol se arrastou até a sala. Procurou com os olhos o
celular para implorar a Mauro voltar para casa o quanto antes, porém, não o
encontrou. Mal podia se manter em pé e levou mais um susto quando fortes
batidas na porta da frente a fizeram dar outro grito, só que desta vez abafado.
— Professora Carol! A senhora está bem?
Arfante, ela reconheceu a voz de um dos seus alunos, o
aplicado Guilherme. Carol foi tropeçando até a porta e abriu, atemorizada:
— Nossa, professora! O que houve?
Carol se apoiou no batente, exausta. Encarou Guilherme que
lhe devolveu um olhar atônito e murmurou:
— Ainda bem... ainda bem que você está aqui.
O rapaz apontou para os pés de Carol.
— Professora! A senhora está machucada!
Ela olhou para baixo e se surpreendeu com o sangue que
esvaía dos seus pés. Levou alguns segundos até se dar conta o que era aquilo
tudo.
— Eu... eu quebrei um copo praticamente em cima do meu pé.
— Puxa – assoviou ele, — pelo jeito que a senhora gritou
pensei que alguém estivesse lhe fazendo mal.
Ainda apavorada, Carol segurou o aluno pela camiseta.
— Tem um gato lá fora!
— Hein?
— Um gato. O gato que o Mauro matou hoje de manhã! Ele
voltou!
Guilherme não entendeu direito, mas os olhos fixos e
amedrontados de Carol mostravam tanto terror que ele decidiu tomar uma atitude.
— Professora, me diga onde ele está! Posso afugentá-lo. Ei,
a senhora disse que o gato morreu?
Carol levou o garoto até a porta do pátio. Com o dedo
trêmulo ela apontou:
— Ele está do outro lado.
Era nítida a perturbação da professora Carolina. Conhecida
no bairro como uma mulher séria e correta, Guilherme tinha certeza que aquele
comportamento tinha uma razão muito forte.
— Pode deixar, professora – o rapaz pegou a vassoura
mostrando determinação. — Se tem alguma coisa aí do lado de fora, pode ter
certeza que eu vou botar pra correr!
Guilherme abriu a porta com valentia e acendeu a luz do
pátio. De repente tudo ficou iluminado. E do gato não havia o menor sinal.
— Não tem nada aqui.
— Mas tinha – retrucou Carol com a voz fraca.
O rapaz caminhou pelo pátio procurando o tal gato, verificando
se o bicho estaria em algum canto mal iluminado. Com a porta encostada e só com
a cabeça pra fora, Carol acompanhou a inspeção do aluno, atenta. Por fim, ele
voltou para dentro da casa e pôs a vassoura de volta no lugar.
— Acho que ele fugiu. Mas, professora... Eu não entendi bem
uma coisa. A senhora disse que o seu marido matou o bicho? Então como ele
voltou?
Nem Carol sabia o que responder. O gato estava morto quando
Mauro o pôs dentro do saco. O lixão ficava longe, bem longe. Não, devia ser outro
gato parecido. Ou somente sua imaginação fértil e histérica.
— Muito obrigada, Guilherme – Carol ignorou a pergunta e com
uma das mãos nas costas do rapaz conduziu-o até a porta da frente. — Acho que
ando assistindo muitos filmes de terror.
— Pode me chamar se for preciso, professora – Guilherme só
faltou bater continência. — Estarei aqui em dois segundos.
Ela agradeceu e o rapaz foi embora. Zonza, ela sentou no
sofá, encolhida, e esperou o marido voltar.
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