A
resposta veio em uma semana. Eu estava empregada! Juntei minhas roupas em duas
mochilas e no dia combinado assumi minhas funções de babá da Laila.
A
família morava numa grande casa em um bairro afastado do centro. Havia outras
residências no condomínio, mas o contato com a vizinhança era mínimo. No início
estranhei. Parecíamos tão isolados! Porém, logo me vi às voltas com os cuidados
de Laila. Os pais saiam cedo para o trabalho e nós passávamos o dia todo
juntas. Laila foi um amor nos dois primeiros dias.
Até
que ela resolveu matar um gato.
Eu
estava preparando o almoço com a porta da cozinha aberta para o vasto jardim.
De repente olhei para o lado e deparei-me com Laila, tão angelical no seu
vestidinho cor-de-rosa, segurando um gato branco pelo pescoço. Dei um grito e
soltei a colher que caiu no chão espalhando comida. Os olhos de Laila, tão
frios, e o gato de língua de fora me deixaram muito assustada. O rosto de Laila
era uma máscara de maldade. Nem parecia a menina fofa que eu aprendera a amar.
—
Laila, o que você fez?
Ela
sorriu e largou o bicho no chão. Eu nunca havia visto aquele gato na vida.
Devia ser dos vizinhos. Eu queria muito que Laila respondesse que não tinha
nenhuma relação com a condição do bicho.
—
Eu o matei.
A
confissão feita em tom frio me chocou mais ainda. Tentei fingir serenidade.
Laila parecia possuída por um espírito maligno e eu não podia mostrar para ela
o quanto aquilo tudo era terrível para mim.
—
Por que você fez isto com o gato, Laila?
—
Não gosto dele.
Fiquei
sem ter o que dizer. Olhei para o gato morto aos pés da criança. De uma hora
para outra os olhos azuis se tornaram doces. Outra garota. Eu permanecia pasma.
—
Bem, temos que enterrá-lo.
Laila
pulou por sobre o gato, passou por mim ignorando-me totalmente e foi para a
sala assistir televisão. Fiquei estática por alguns segundos, meio catatônica.
Eu teria que enterrar o gato. Nunca tinha passado por uma situação semelhante
na vida.
Achei
uma pá na garagem e fiz uma cova para enterrar o bicho. Quando terminei, meia
hora depois, eu sentia uma bola dentro do estômago. De repente, Laila e aquela
casa me pareceram muito sinistras.
O
restante da tarde foi tranquilo, mas não consegui mais ficar à vontade com
Laila. Ela, contudo, se portou normal o tempo todo. Almoçou bem, dormiu o
soninho da tarde, andou de bicicleta pelas ruas do condomínio, sempre sorrindo
e exalando doçura. Era tudo muito surreal.
Os
pais chegaram no horário habitual e aproveitei o momento que a mãe de Laila
estava na cozinha para contar o ocorrido. Ela me escutou atentamente enquanto
tomava um copo de suco de laranja. Era possível escutar os gritinhos felizes de
Laila brincando no outro cômodo com o pai.
—
Posso entender seu desconforto ─ afirmou ela me
olhando fixamente. — Peço que não se assuste. Laila é assim mesmo.
—
Assim mesmo? Como assim?
—
É um traço da sua personalidade ─ a mulher baixou o
tom de voz. — Ela não gosta de animais. Da
outra vez aconteceu o mesmo com um filhote de cachorro que veio, por engano,
parar no nosso jardim.
Arregalei
meus olhos. Achei que estivesse entendendo tudo errado.
—
Ela é uma boa menina ─ a mãe de Laila sorriu. — Contamos com a sua discrição.
Meu
Deus, pensei. A criança é psicopata.
Pensamentos
conflitantes passaram velozes pela minha mente. E se eu pedisse para ir embora?
Não, eu não podia. Estava cheia de dívidas. Precisava aguentar firme. Laila não
era uma garotinha ruim. Era dona do sorriso mais lindo do mundo, a despeito de
ter assassinado dois animais.
—
Que Deus me ajude.
*
Aquele
primeiro mês passou tão rápido e com tantos afazeres que quase me esqueci dos
feitos de Laila. No mais, ela vinha se portando muito bem, como uma criança
normal. Laila gostava de me presentear com belos desenhos que fazia com seus
lápis de cor. Líamos histórias juntas e depois ela dormia no meu ombro igual um
anjo. Eu queria acreditar que aquilo que eu presenciara nunca mais iria se
repetir.
O
próximo golpe veio em um dia à tarde. Os pais de Laila precisaram fazer uma
viagem a negócios. Eles voltariam somente no dia seguinte. Mas não me importei.
Laila vinha se comportando tão bem que a morte do gato parecia algo
surreal. Eu decidira – para meu
próprio bem – esconder aquele fato em um
canto obscuro do meu cérebro. Descobrimos, no jardim, um enorme formigueiro. Arrepiei-me
só de ver aquelas formigas graúdas. Laila, ao meu lado, disse:
—
Odeio estes bichos.
Estremeci.
A voz de Laila saiu algo... tenebroso. Virei para o lado. Os olhos dela estavam
parados e a boca era um risco fino. Fiquei sem saber como agir.
—
Er... Elas não causam mal, Laila.
Foi
tudo muito rápido. Com uma força que me surpreendeu, Laila me empurrou sobre o
formigueiro. Eu caí de cara sobre os insetos em meio a um grito de susto.
Formigas entraram na minha boca, olhos e morderam minhas bochechas. Fiquei em
pé, batendo no meu rosto com as mãos, tentando afastar os bichos dos meus
braços, cuspindo as que entraram na minha boca. Foi horrível. O tempo todo
Laila riu de mim. Uma risada maldosa e asquerosa.
Então
um véu vermelho cobriu meus olhos. Enlouqueci. Desferi um tapa tão forte ao
lado da cabeça de Laila que ela caiu. Somente percebi o que tinha feito quando
o surto passou e vi que a pedra que Laila havia batido a cabeça se tingia de
sangue.
—
Laila, levante.
Suspendi
Laila pelos ombros, porém ela parecia uma boneca de pano. O ferimento ao lado
da cabeça era feio. Feio e fatal. Sacudi-a algumas vezes aos berros:
—
Acorda, desgraçada! Acorda!
Fiquei
em pânico. Meu corpo gelou. Não senti mais as picadas das formigas. Com a mesma
pá que havia enterrado o gato, fiz um buraco para Laila e a pedra
ensanguentada. A sepultura foi no limite com a outra propriedade, afastada da
casa.
Eram apenas quatro horas da tarde. E eu
tinha o cadáver de uma criança enterrado no jardim.
*
Fiquei sentada no
degrau da varanda, atordoada, e a noite chegou. Meus olhos não desgrudavam da
pequena sepultura. De repente, me dei conta que era noite e levantei para
acender a luz. Estava sozinha, com medo e pasma com o que tinha acontecido. Eu
não sabia o que fazer. Pensei em ligar para a policia, correr até o vizinho
mais próximo, fugir. Me matar.Mas não fiz nada. Continuei sentada, em estado
catatônico, tão gelada que parecia que a morta era eu.
Algo se moveu próximo
à sepultura de Laila. No início pensei que fosse algum animal e levei um susto.
O movimento cessou e então achei que fosse impressão minha. Eu estava
perturbada demais. Uns dois minutos depois aconteceu a mesma coisa. Algo estava
se movendo na cova rasa de Laila. Fiquei em pé. Não sabia se fugia ou ia até lá
conferir o que era.
Permaneci no mesmo
lugar.
Uma mão saiu de
dentro da terra. Não me dei conta na hora o que era aquilo. Os dedos romperam a
terra e em seguida apareceu a mão inteira. Meu coração quase parou. Depois
surgiu a outra mão. Ambas as mãos se ergueram em direção ao céu como se
quisessem pegar alguma coisa. Lágrimas correram pelo meu rosto inchado pelas
mordidas das formigas.Minha voz ficou presa na garganta. Achei que fosse um
pesadelo. Mas não era. Eu estava bem acordada.
Depois das mãos terem
rompido a terra, a cabeça loira de Laila surgiu. Ela sentou, ereta, e balançou
os cabelos de um lado para o outro para tirar a sujeira da cabeça. Então olhou
para mim.
Nossos olhos ficaram
fixos um no outro por alguns segundos. Laila havia virado um zumbi. Levantei
pronta para fugir, porém meus joelhos estavam fracos demais para me sustentarem
tamanho meu medo. Caí no chão, sem ar e à beira de um ataque de nervos. Olhei
para frente outra vez. Laila chutou a terra que voou para cima e para todos os
lados. Eu observava a cena bizarra. Parecia que ela estava se divertindo ao
fazer aquilo. Acho que escutei uma gargalhada. Havia vários sons ao meu redor.
Pássaros, um cachorro latindo ao longe, meu coração descompassado. E a
gargalhada de Laila.
Então ela se virou de
lado e ficou em pé. Eu, caída no chão, sem forças para me levantar, assisti
Laila tirar a terra do vestido, da pele e dos cabelos. A ferida agora havia
virado uma massa seca de sangue. Eu devia ter fugido. Laila era uma morta-viva.
A criatura (sim,
agora Laila era isto) veio caminhando até mim. Um andar meio arrastado, mas
firme. Laila sorriu e mesmo com as bochechas sujas de terra eu pude enxergar
suas covinhas. Mas aquele sorriso... Era como se o diabo tivesse entrado
naquele corpo. Tentei levantar, contudo não consegui ficar em pé outra vez. Uma
fraqueza enorme tomara conta do meu corpo. Uma tonteira, um enjoo, eu me sentia
doente. Ao mesmo tempo a coisa vinha se aproximando. Laila era tão bonita
quando era viva, mas agora... Agora ela era um monstro que caminhava na minha
direção e que chegava cada vez mais perto. As mãozinhas se crisparam como se
ela quisesse me esganar. Ah, mas eu tinha mais força que Laila. Ela era uma
criança e eu, uma mulher adulta. Laila não me venceria ainda que eu estivesse
me sentindo tão mal.
Ela me sorriu e eu
reparei nos dentes sujos de terra. Eu estava completamente sozinha com Laila.
Ou no que ela se transformara. Então ela deu uma gargalhada, uma coisa sinistra
e maquiavélica. Estremeci. Não, eu precisava me erguer. Precisava sair daquele
lugar antes que ela chegasse perto de mim. Eu devia ter chamado a polícia desde
o início, antes mesmo de enfiar Laila na cova rasa.
Uma paulada na cabeça
me deixou mais zonza do que eu já estava. Caí para o lado e me vi deitada no
gramado olhando para as estrelas. Minha cabeça doía e encostei a mão na testa.
Estava pegajosa. Era sangue. Gemi. Laila cresceu ao meu lado. Reparei que ela
segurava um pedaço de pau na mão. Foi aquilo que me atingira. Se eu estivesse no
meu estado normal, não teria sido abatida daquele jeito.
— Laila, por favor...
– consegui murmurar. — Me perdoe.
Ela apernas me olhou
com aqueles olhos que antes eu achara tão lindos. A última coisa que vi foi
aquele pedaço de pau firme nas mãos dela.
—Morra.
*
Dei um cutucão com
meu pé na cabeça dela. A babá sangrava pelo nariz e pela boca. Morta. Feito o
gato. Como o cachorro que arranquei a cabeça. Tipo meu primo que eu empurrei no
lago aquela vez. Ops, mas ele não morreu. Meu tio conseguiu salvá-lo antes. Uma
pena. Minha cabeça doía, acho que tenho terra na garganta. Preciso ligar para
meus pais. Acho que eles estão longe, mas serão os únicos que poderão me salvar
(de novo).
Peguei o celular da
babá que estava sobre o sofá. Minha mãe atendeu logo.
— Oi, mamãe. Eu fiz
de novo.
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