Lucinda, apesar
do pavor, pôde contar com as suas pernas. Assim que se embrenhou no bosque,
escutou os berros aterrorizantes de João atrás de si. Ele não hesitaria em
matá-la. O seu consolo era que certamente Doutor Henrique escutara os tiros e
talvez tivesse condições de providenciar ajuda.
Dentro da mata
se fazia cada vez mais escuro. Lucinda temia ficares em lugares mal iluminados,
mas daquela vez não teria jeito. A luz da lua entre as nuvens pouco lhe ajudava
e sabia estar em desvantagem. João devia conhecer muito bem aquelas trilhas,
cada árvore e arbusto. Os braços e o rosto de Lucinda já estavam arranhados por
bater nos galhos que surgiam a sua frente. Não ouvia mais os gritos de João,
mas ele devia estar ao seu encalço. O homem era esperto. Quanto mais silêncio
fizesse, mais fácil seria de acabar com ela.
— Oh, Álvaro...
Por favor, me salve...
Ela esperou que
Álvaro surgisse em algum recanto do bosque para resgatá-la. Nunca imaginou que
uma simples visita ao cemitério fosse render aquilo tudo. Conseguira mexer com
a família mais poderosa da região e também temia por sua própria família. Cada
passo dado agora já era com dificuldade, pois além da tensão, sentia-se
cansada. Aos poucos escutou o som manso do rio. Parecia não estar muito longe
agora. Guiada pelo ouvido, imersa na escuridão, Lucinda seguiu a duras penas a
trilha, atenta para ruídos de passos atrás dela. Não escutou nada. Em menos de
dez minutos chegou ao rio. E simplesmente não soube o que fazer.
Lucinda desabou
na beira do rio, exausta. O coração batia em alta velocidade, por medo e
cansaço. Aparentemente estava sozinha ali e as nuvens haviam encoberto a lua, o
que era muito bom caso João aparecesse. Respirando fundo, Lucinda olhou para
frente. Se tivesse fôlego podia atravessar a nado o rio. O problema é que nunca
soubera nadar direito e não fazia isto há anos. Tampouco sabia a profundidade
ou o que encontraria do outro lado. Porém, qual a alternativa que tinha? João
poderia surgir a qualquer momento e não podia se dar ao luxo de ficar sentada
ali. Precisava se salvar.
No momento em
Lucinda equilibrou-se para ficar em pé, a lua surgiu brilhante. Observando o
leito do rio, ela calculou que precisaria de bastante energia para chegar ao
outro lado. Mas antes que desse um passo a frente, uma mão áspera a pegou
fortemente pelo cotovelo, torcendo seu braço. Lucinda não precisou sequer se
virar para saber quem era.
— Então você
pensou que poderia escapar de mim, sua cadela?
O bafo de João
fez Lucinda ficar nauseada. Ela tentou puxar o braço, mas João evidentemente
era mais forte.
— Você é muito
ousada. Seus amiguinhos empregados também. Mas vocês terão tudo o que merecem.
Lucinda gemeu
quando João começou a arrastá-la para o rio. Ele fez com que a moça entrasse na
água à força. A cada passo dado, Lucinda afundava um pouco. O rio era profundo
e em breve não daria mais pé. Com força, João afundou a cabeça dela por alguns
momentos, trazendo-a de volta à tona. Lucinda respirou todo o ar que podia, já
tonta. Ele deveria estar repetindo o que havia feito com Julieta na noite
anterior.
— Foi assim que
vocês a mataram... não foi?
A voz de Lucinda
saiu entrecortada e João ficou furioso. Esbravejou:
— Cale a sua
boca!
Antes de ter a
cabeça mergulhada novamente na água, Lucinda percebeu que João olhou para os
lados. Parecia observar se havia alguém nas proximidades. Desta vez, na
percepção de Lucinda, João a deixou um pouco mais de tempo submersa. Quando
finalmente ele a soltou, a moça mal enxergou as estrelas brilhantes no céu.
Estava zonza, sem ar, como se a morte estivesse lhe rondando. Ela tentou se
segurar, instintivamente, na camisa de João. Ele deu uma gargalhada maldosa.
— Fim de linha
para você, garotinha. Quando você nascer de novo, aprenda que não deve se meter
com gente poderosa.
João não
precisou quase de força nenhuma para empurrar Lucinda na água. O rio não estava
com muita correnteza naquela noite, porém ela estava tão fraca, exausta e sem
ar que facilmente foi levada pelas águas. A última visão que teve de João foi
dele rindo com a cabeça jogada para trás.
*
O corpo de
Lucinda foi levado lentamente pelo rio. No início ela afundou, mas uma força
sobrenatural a fez voltar à superfície antes que perdesse os sentidos. “Se ao
menos eu conseguisse boiar”, gemeu ela, tentando manter a cabeça fora da água.
Com os olhos marejados de lágrimas, Lucinda observou as estrelas lá em cima,
tão belas, alheias ao sofrimento dela. Os braços estavam tão cansados que ela
mal podia se debater. Conseguiu boiar por alguns segundos, mas por fim afundou.
E na exaustão em que se encontrava, não achou isto tão ruim. Se era para
morrer, que fosse de uma vez.
De repente,
Lucinda voltou à tona novamente. Abriu os olhos enquanto sentia que estava sendo
levada para a beira do rio não pela correnteza, mas por alguma outra coisa. Aos
poucos foi sentindo que não estava mais tão fundo assim e os pés tocaram o
chão. Quando Lucinda caiu de novo, a água já lhe batia nos joelhos. Achou que
não fosse mais levantar, mas foi levada até a beira quase engatinhando, os
cabelos grudando no rosto e no pescoço. Quase não tinha mais força para gemer.
Quando finalmente tombou na beira do rio, fora da água, olhou para os lados. Não
ficou surpresa ao se deparar com Álvaro.
Ela sorriu e por
alguns instantes achou que tinha morrido também.
— Obrigado por
tudo o que você fez.
Lucinda tentou
falar, mas a voz não saiu. Álvaro prosseguiu:
— Não se
preocupe. Eles vão lhe encontrar. Você não irá morrer.
Ela balançou a
cabeça sem saber exatamente em que mundo se encontrava. Mas estar com Álvaro
estava sendo bom. Sentia-se em paz, um pouco à parte da crueldade e injustiça
que presenciara e vivera. Mesmo molhada não se sentia desconfortável. O barulho
do rio era relaxante e quase pôde sentir o toque da mão de Álvaro na sua. As
pálpebras pesaram antes que conseguisse dizer qualquer coisa para ele. Porém,
de onde Álvaro vinha provavelmente ele já sabia tudo o que ela gostaria de
dizer. Precisava descansar. Estava tranquila. Álvaro a protegia. Não precisava
de mais nada.
Lucinda não
soube quanto tempo se passou. Despertou com latidos de cachorro e gritos de
homens. Ao abrir os olhos percebeu fachos de lanterna próximo onde ela estava.
Ergueu o braço para se fazer visível e a voz de um homem, provavelmente
Henrique, gritou:
— Lá está ela!
Viva!
Sim, viva.
Lucinda sorriu ao se lembrar de quem a salvara. Quem acreditaria? Mas para que
contar? Levaria aquele segredo para o resto da sua vida e, quem sabe,
encontraria Álvaro em outros tempos.
Ou nos seus
sonhos.
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