— O gato
morreu – Mauro a encarou duramente. — Ele estava bem morto quando eu o joguei
no lixão. Deve ter sido outro.
Carol balançou a cabeça fazendo que
não.
— Eu vi. Era o mesmo.
— Foi você quem disse que só enxergou
os olhos dele. O pátio estava escuro e não deu sequer pra ver o corpo.
— Os olhos eram dele – salientou Carol,
incisiva. — Ele voltou.
— Olha, — Mauro abriu uma latinha de
cerveja. — Você está impressionada com a violência do gato preto. Não tem gato
nenhum. Por que você não bebe uma cervejinha? Vai fazer com que relaxe.
Carol bebeu não uma, mas duas latas da
bebida. Sem estar acostumada com álcool, ela desabou na cama vinte minutos
depois. Mauro ficou mais algum tempo assistindo TV, meio dormindo meio
acordado. Ele também havia bebido além da conta com os amigos e depois de algum
tempo achou que o melhor era ir pra cama de uma vez. Praticamente sem tirar a
roupa, o homem deitou ao lado da esposa e não tardou a cair em um sono ferrado.
Ele despertou, de repente, duas horas
depois com o som de um miado e sentou na cama tão rápido que chegou a ficar
tonto. Contudo, o silêncio ao seu redor era absoluto e Mauro se pegou dizendo
várias vezes que o miado que escutara havia sido um sonho seu. Pudera, Carol
esgotara tanto sua paciência que aquela história acabara por deixá-lo
impressionado.
Ele deu um salto e ficou em pé. Em
silêncio saiu do quarto e foi até o banheiro, com a bexiga apertada. Distraído,
acendeu a luz. E ficou paralisado. Na janelinha do banheiro, do lado de fora, a
sombra de um gato se desenhava através do vidro fosco. Mauro segurou o ar,
surpreso e assustado.
Um gato. Grande. À luz da lua parecia
negro também. Havia uma pequena fresta aberta na janela basculante. Mesmo
tenso, Mauro conseguiu raciocinar. Não, ali não haveria espaço para um gato
daquele porte passar.
A pata peluda do bicho entrou pelo vão
da janela e Mauro sentiu todos os pelos do corpo se arrepiarem. Devia estar
bêbado, era isto. Aquilo não estava acontecendo. Tudo piorou quando o animal
ficou em pé e a pata entrou mais ainda pela janela. O pavor tomou conta. Mauro
pegou uma caneca, encheu de água e atirou na janela, atingindo o animal. Este
levou um susto e recuou. O homem não perdeu tempo e se lançou na janela para
fechá-la. O gato, ao perceber que não poderia mais entrar, sibilou alto e
arranhou o vidro. Mauro suou frio, tremeu e teve ímpetos de chamar Carol. Mas
então o gato foi embora deixando Mauro com as pernas tão fracas que por alguns
instantes ele pensou que teria que se agachar até adquirir forças outra vez
para ficar em pé. Depois de alguns minutos se recuperando, Mauro respirou
fundo, deu meia volta e foi para o quarto onde se deitou na cama ao lado da
esposa. Ele sabia que a visão do gato não era fruto do álcool. O desgraçado
estava ali, de verdade. Pronto para atacá-lo. Mauro fechou os olhos, tão tenso
que o coração parecia querer furar o peito. Custou a dormir e quando isto
aconteceu, seu sono foi repleto de pesadelos.
*
Carol se remexeu na cama, ainda com as
pálpebras pesadas. Não estava muito disposta a levantar quando escutou a voz
forte do marido:
— Ele voltou.
— Hein? – Carol não entendeu direito.
Achou que o marido estava falando dormindo.
— O gato. Ele voltou.
Carol sentou e encarou o marido. Ambos
estavam de olhos arregalados.
— Como é?
— O gato. Ele estava na janela do
banheiro hoje de madrugada.
— E o que você fez? – a jovem perguntou
com a voz estridente.
— Ele tentou entrar e joguei água no
bicho. Cara, que pavor.
Ver o marido com medo era assustador
para Carol. Mauro chamava atenção por ser metido à valentão. Até o dia anterior
nunca o vira dizer que tinha medo de alguma coisa. Mas um gato fora capaz de
pôr toda sua coragem ladeira abaixo.
— Viu como era verdade? Ele está nos
rondando. O que iremos fazer agora?
— Trancar a casa, portas, janelas,
tudo. E ter muito cuidado quando formos até o pátio. Ele pode estar à espreita
pronto para nos atacar.
— E se colocarmos veneno?
— Carol, o bicho tá morto.
O casal ficou em silêncio ruminando os
mais terríveis pensamentos.
— Você não devia tê-lo matado.
— O gato me atacou, esqueceu? Foi meu
instinto de defesa.
Mauro levantou e saiu do quarto.
Fiscalizou a casa inteira e fechou toda e qualquer fresta onde o gato poderia
entrar. Depois voltou para o quarto.
— Vou buscar pão. A casa está toda
fechada. Não passa nem uma mosca. E é melhor também você não ir para o pátio.
— Eu vou junto. Não quero ficar sozinha
aqui.
Em menos de quinze minutos o casal saiu
de mãos dadas e rostos um pouco sombrios. O bairro em que moravam era quase
todo residencial e a vizinhança se conhecia. E como Carol era professora da
escola, era muito benquista, tal qual o marido. Ambos caminhavam em silêncio em
direção à padaria quando se depararam com uma aglomeração na esquina. Em torno
de cinco pessoas cercava Judite, fofoqueira local. Mauro, ao ver a cena, puxou
Carol pela mão.
— Vamos atravessar para o outro lado. A
velha Judite já está fazendo função de manhã cedo.
O casal seguiu para a calçada oposta,
mas Judite os viu. Com gestos largos, ela os chamou. Mauro praguejou baixinho e
Carol acenou para ela com um sorriso falso.
— Disfarce – murmurou para o marido. —
Dona Judite pode perceber.
— Era tudo o que me faltava hoje –
Mauro falou em voz alta, aborrecido e com fome.
Judite parecia nervosa. Muito nervosa.
Os vizinhos ao seu redor tentavam acalmá-la. Alguns papéis nas mãos dela
tremiam porque a senhora estava agitada. Carol ficou com pena e pôs a mão no
ombro dela na tentativa de tranquilizá-la.
— O que houve, Dona Judite? A senhora
está pálida.
— Estou mesmo muito nervosa, minha
querida! Meu gato, o Bruno, está sumido desde ontem de manhã!
Carol ficou com o sorriso congelado
enquanto Judite colocava nas mãos de Mauro uma folha de papel ofício com o
retrato colorido de um gato preto, grande e adulto. Ele permaneceu em silêncio
olhando para a foto. Judite também havia colado o cartaz no poste no qual se
apoiava.
— Vocês não o viram? – choramingou. —
Ele só saía para dar umas voltinhas e depois retornava. Nunca sumiu por tanto
tempo.
Carol olhou para o marido. Ambos não
sabiam o que dizer.
— Você viu alguma coisa, amor?
Mauro balançou a cabeça, pálido.
— Nem sinal.
Ele tentou devolver o papel para
Judite, mas ela recusou.
— Fique com isto. Talvez você precise
para reconhecer meu Bruno.
Carol mal respirava quando olhou para o
lado e deu de cara com Guilherme. O rapaz, mudo, encarava o casal com uma
expressão enigmática. Carol, mais nervosa ainda, voltou sua atenção para
Judite.
— Fique tranquila. Se eu e meu esposo
virmos o Bruno iremos lhe avisar. Eu prometo.
— Muito obrigada, professora! Estou tão
nervosa!
O casal se afastou. Mauro ainda
segurava o papel com a foto do gato quando perguntou entredentes:
— O que mais me falta acontecer hoje?
— Tem uma coisa que não contei para
você – sussurrou Carol.
— O que é? – Mauro se virou para a
esposa com brusquidão.
— O Guilherme, meu aluno. Ele quem me
ajudou ontem.
— O quê?
Carol ficou tensa. Mauro estava
furioso.
— Por que não me disse? Achei que você
tinha resolvido o problema sozinha!
— De que jeito? Eu estava em surto por
causa do bicho! E se o Guilherme abrir a boca? Eu contei que você tinha matado
o gato.
Mauro começou a suar.
— Se ele abrir a boca, a velha vai pra
polícia. Isto agora dá cadeia!
— Amor, calma! Ninguém viu nada! Eu
posso alegar que estava nervosa e falei besteira. E… sei lá. Talvez o tal Bruno
esteja vivo.
Carol olhou a foto e comentou:
— Será que é o mesmo? Este aqui parece
mais doce.
Mauro bufava quando chegou à padaria.
— Você trate de desmentir qualquer
coisa que o tal do Guilherme falar. Não quero complicação pro meu lado por
causa de um maldito gato!
A jovem silenciou, incomodada com a
fúria do marido. No retorno para casa Judite continuava rodeada por um círculo
de pessoas, expressando-se com grandes gestos, falando sobre Bruno. Alguns a
consolavam e seguravam as folhas com as fotos do gato. Guilherme ainda se
mantinha ao lado da senhora e fuzilou o casal com os olhos. Carol engoliu em
seco e seguiu ao lado de Mauro ligeiramente encolhida.