Era sábado e dia de missa. O sol voltara e por volta das três horas da
tarde Dona Iara e vô Ricardo começaram a se aprontar para irem até a igreja.
— Não quer vir conosco, Clarinha? – perguntou a avó prendendo os
brincos frente ao espelho.
— Não, vó. Não gosto muito de missas.
— Tem certeza? Nossa igreja está tão bonita...
— Trouxe um livro de casa. Vou ficar lendo, se você não se importar.
— Claro que não me importo.
Não demorou muito o casal partiu. Clarissa ficou na janela até vê-los
dobrar a esquina, mal segurando sua ansiedade. Assim que os perdeu de vista,
correu até o quintal, pegou a bicicleta, a chave de casa e abriu a porta.
Quando montou a bicicleta teve que respirar fundo para se acalmar. Era tão
tímida que o coração parecia explodir no peito. Mas não podia deixar aquela
chance passar. Se conseguisse ver Dani faria das tripas coração para tentar
falar com ele. Somente esperava que o rapaz estivesse sozinho.
O caminho para o bairro isolado não foi difícil de encontrar, embora
tivesse errado o trajeto atrasando sua chegada. Porém, assim que se viu na rua
ladeada de árvores sentiu um misto de alívio e pressão no peito. Agora não havia
mais retorno. E nem se perdoaria caso o medo fosse maior e a empurrasse de
volta para casa. Pedalando o mais rápido que podia, Clarissa conduziu a
bicicleta até a hospedaria. Tal qual o dia anterior, o caminho de pedras estava
vazio atrás dos portões escancarados.
Por alguns instantes Clarissa ficou parada olhando para o lugar. Tudo
parecia tão deserto. Será que havia realmente uma casa lá em cima? As árvores
não a deixavam ver nada. Bem, não podia ficar parada ali para sempre. As horas
voavam e a avó ficaria preocupada se chegasse em casa e não encontrasse a neta.
A subida íngreme Clarissa fez à pé conduzindo a bicicleta ao seu lado.
À medida que avançava, ela pôde visualizar uma construção de dois andares, de
tijolos, surgindo entre as árvores. Era espetacular. A casa era sólida e tinha
um lindo jardim na frente que era possível ser visto ainda na subida. Um pouco
antes de chegar lá em cima escutou vozes.
Clarissa parou de repente quase no topo. O coração acelerou outra vez.
Não estava sozinha. Havia pessoas hospedadas por lá. Mais lentamente Clarissa
terminou de subir, ansiosa pelo que encontraria. O som de vozes aumentou.
Parecia ser de crianças.
Duas lindas menininhas louras brincavam no jardim. Os balanços voavam
altos e os cabelos de ambas se misturavam ao vento. A visão era tão bonita que
Clarissa se deixou ficar parada, admirando-as. Elas riam e gritavam e não havia
ninguém por perto cuidando delas. Se havia crianças era sinal que também em
algum lugar deveria haver adultos. Os raios de sol passavam entre as árvores
iluminando o jardim. Uma brisa sacudiu o ar e fez cair uma chuva de folhas
secas de uma árvore.
Ela deixou a bicicleta encostada em uma árvore e deu alguns passos em
direção às meninas. Só então foi vista por elas. Os balanços foram parando
serenamente até que as crianças ficaram com os pés totalmente no chão. Ambas as
meninas encararam Clarissa como se ela fosse uma intrusa.
— Boa tarde, meninas! – ela tentou ser simpática para não as assustar.
— Onde estão os pais de vocês?
As duas permaneceram em silêncio e se entreolharam. Clarissa se sentiu
incomodada com a situação.
— Vocês vivem aqui?
De repente, uma delas saltou do balanço e correu na direção contrária
seguida da outra garotinha. Clarissa chegou a dar alguns passos para frente
como se quisesse ir atrás das meninas fujonas. Depois desistiu. Se algum adulto
visse a cena poderia acusá-la de estar ameaçando as pequenas.
Novamente Clarissa se viu sozinha naquele lugar tão bonito, solitário e
porque não dizer, estranho. Não pretendia ir embora ainda, mas faltava coragem
para ver o que mais havia por lá. Ela respirou fundo. Ora, não estava fazendo
nada de mal. Se alguém aparecesse iria dizer que estava conhecendo o lugar.
Afinal, os portões estavam abertos e não havia placa dizendo que era proibida a
visitação.
Clarissa seguiu pelo jardim passando pelos balanços. Mais adiante havia
um chafariz e alguns bancos. Todos estavam vazios, exceto um. Havia alguém
sentado de costas para ela. A pessoa mantinha a cabeça branca baixa, como se
estivesse lendo um livro ou olhando para as próprias mãos. Clarissa decidiu ir
até lá se apresentar.
Clarissa percebeu que era uma senhora. Ainda não podia ver-lhe o rosto
e a última coisa que a jovem queria era pregar um susto nela. Por isto ela
caminhou, cuidadosamente, fazendo barulho com os tênis de propósito sobre as
folhas secas para chamar a atenção. Mesmo assim, a velha senhora continuou na
mesma posição. Talvez fosse surda, pensou Clarissa.
Lentamente e respirando fundo com medo de ser mal interpretada,
Clarissa deu a volta no banco e parou bem perto da mulher. Uma senhora fazendo
croché, hábil com suas agulhas, não tirava os olhos do seu trabalho. Ela
trajava um belo vestido azul com algumas rendas. As mangas quase cobriam as
mãos. Estava muito concentrada no que fazia.
— Boa tarde...
Clarissa esperou que a senhora olhasse para cima. No entanto, ela
apenas continuou fazendo seu crochê.
— Senhora... posso sentar aqui?
Não houve resposta e Clarissa sentou assim mesmo. Pela posição do sol
ela se deu conta que o tempo estava passando muito rápido e era preciso
resolver o assunto de uma vez. Ou sua avó ficaria muito brava.
— A senhora está hospedada aqui?
Um perfume de lavanda tomou conta do ar e contribuiu para que Clarissa
se acalmasse um pouco. A mulher não respondeu. Sequer levantou os olhos para
ela.
— Eu… estou procurando um rapaz. Acho que ele está parando aqui. É
loiro, sabe? E muito bonito.
As agulhas continuavam a fazer rapidamente seu trabalho. A velha
senhora não levantou a cabeça, não suspirou, não tomou conhecimento de
Clarissa. Em compensação, o crochê se desenvolvia bem.
— As meninas são suas netas? A senhora está fazendo para elas? Está
muito bonito, viu?
Silêncio. Clarissa, desconfortável, olhou para os lados. Não havia mais
ninguém por perto. As vozes das crianças não eram mais ouvidas. No ar, somente
o aroma agradável da lavanda.
Ela fechou os olhos procurando inspiração. Será que não era melhor ir
mesmo embora?
Uma música suave. Foi assim que tudo começou. Clarissa ainda estava de
olhos fechados quando os acordes de um piano tomaram conta do ar. No início ela
achou que fosse sua imaginação, pois sua impressão é que estava em um lugar no
mundo dos sonhos. Mas, aos poucos, as notas do piano foram se fazendo mais
nítidas e Clarissa abriu os olhos. A brisa levava a música diretamente a ela.
Clarissa ficou em pé. Precisava saber de onde vinha.
Ela olhou para os lados. A poucos metros se erguia a casa. Uma das
janelas estava aberta e o som parecia vir dali. Clarissa se dirigiu até lá,
curiosa. Alguém tocava piano no meio da tarde. Que lugar era aquele, tão
mágico?
Clarissa, em silêncio, chegou até a janela e espiou para dentro. A
primeira coisa que viu foi um piano de cauda ao fundo de um salão quase vazio. Os
acordes ficaram mais altos no exato momento que ela se posicionou melhor no
parapeito. Um homem tocava o piano, suavemente, concentrado, de olhos fechados.
Ela deixou escapar um gemido baixo, de susto e admiração ao mesmo
tempo. Dani era o pianista. Era das suas mãos que vinha a música que a
encantava. O rapaz não se voltou nenhuma vez para o lado da janela onde
Clarissa estava. Era como se para ele nada mais no mundo existisse.
Para Clarissa o sentimento era o mesmo. O mundo desapareceu. A música
que Dani tocava a deixara maravilhada. O impacto foi tão grande que Clarissa perdeu
a noção do tempo. Ela não queria que Dani parasse de tocar, mas desejava que
ele tomasse conhecimento da sua existência. Não podia interrompê-lo. Isto
quebraria toda a magia. Aos poucos, as luzes no salão começaram a acender.
Clarissa piscou, surpresa. Foi então que se deu conta que a primeira estrela no
céu já havia surgido.
O susto foi tão grande que Clarissa deu dois passos para trás, tropeçou
numa pedra e caiu sentada. A noite estava chegando e junto com ela veio o pavor
de estar em um lugar completamente desconhecido. Ela olhou ao redor,
atarantada. A velha senhora não estava mais sentada no banco, as crianças
haviam desaparecido. Os balanços iam para cima e para baixo, sozinhos, sem quem
ninguém estivesse sentado neles.
Clarissa se levantou limpando as mãos sujas de terra na calça. Lá
dentro a música tocava como antes, mas a garota não tinha mais tempo a perder.
Tensa com a perspectiva de a noite cair e se ver sozinha naquele lugar
distante, Clarissa pegou a bicicleta. Desceu praticamente correndo o caminho
das pedras ainda escutando o som da música que Dani tocava.
Já fora da hospedaria, Clarissa olhou para frente e percebeu que a rua
contava com poucos postes de iluminação. O terror a atingiu em cheio. Não
conhecia bem o lugar. Se dobrasse na esquina errada o risco de se perder era
grande.
Por alguns instantes as pernas lhe faltaram e todo o encantamento que
antes a envolvera ao escutar Dani tocando piano se dissolveu. Ela olhou para os
lados. Não podia ficar ali parada, segurando a bicicleta, deixando o medo a
dominar. A música ainda ressoava nos seus ouvidos quando Clarissa enfim começou
a pedalar para sair de lá. Ela só não sabia se as notas que ainda escutava eram
do piano de Dani ou apenas existiam na sua cabeça.
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