Ela o viu assim que dobrou a esquina. Cansada, cada pedalada era um esforço extra quando subitamente ela enxergou Dani do outro lado da rua, um pouco distante. As pernas faltaram de vez e apesar de não poder enxergar o rosto de Dani, os cabelos louros inconfundíveis enchiam Clarissa de certeza que sim, era ele. Se acelerasse, era bem possível que pudesse alcançá–lo.
Clarissa esqueceu o cansaço e tentou pedalar o mais rápido
que podia, ansiosa. Um friozinho na barriga tornava aquela perseguição muito
mais empolgante. O que dizer quando finalmente estivessem frente a frente?
Deveria ter ensaiado alguma coisa antes.
Quanto mais pedalava, mais distante Dani ficava. Não era
possível, pensou ela, já outra vez cansada e ofegante. Se ao menos soubesse o
nome verdadeiro dele, poderia chamá–lo ainda que fosse muito ousado da sua
parte. Mas o que importava? Não havia tempo para se sentir envergonhada.
Foi tão rápido que Clarissa nem se deu conta. Em meio a sua
afobada perseguição, a bicicleta passou por cima de uma pedra e ela se
desequilibrou totalmente. Sem controle, Clarissa foi parar sobre vários sacos
de lixo que se acumulavam na calçada esperando o caminhão que os recolheria.
– Ui, que nojo – gemeu ela olhando imediatamente na direção
que Dani seguia. Implorou aos céus que ele não tivesse visto o tombo idiota que
acabara de levar. As mãos estavam sujas e pegajosas de algo gosmento. O saco
sobre o qual caíra em cima se rasgara exalando um cheiro de comida passada. –
Não acredito que isto tenha acontecido comigo... – a única boa notícia é que
Dani novamente havia tomado chá de sumiço e saído completamente do campo de
visão de Clarissa.
– Puxa, Clarissa. Que lugar horrível para cair.
A garota olhou para cima. Mariana lhe estendia a mão,
penalizada. Clarissa recusou a ajuda disfarçando o constrangimento.
– Obrigada, Mariana, mas... – ela mostrou as mãos sujas. –
Não acho que seja uma boa ideia você chegar muito perto de mim.
Prontamente Mariana pegou a bicicleta do monte de lixo
enquanto Clarissa se levantava com alguma dificuldade. Fora o vexame e a
sujeira, não estava machucada.
– Como você foi parar em cima do lixo?
– Não sei – respondeu Clarissa afastando uma casca de banana
alojada sobre o tênis. – Passei por cima de alguma coisa, uma pedra, acho...
– Está machucada? Posso acompanhar você.
Clarissa não esperava que Mariana fosse tão solícita. Porém,
a última coisa que queria naquele momento era companhia.
– Não precisa, obrigada, Mariana. Eu consigo chegar em casa.
Mariana apertou a bolsa contra o corpo.
– Se você diz que está tudo bem...
– Ah, estou ótima. Na verdade, só preciso de um banho de
duas horas de duração para tirar este fedor de cima de mim. Obrigada de novo –
disse Clarissa dando meia volta, ansiosa em sair dali.
Clarissa voltou para casa à pé, conduzindo a bicicleta.
Naquele momento desejou não encontrar Dani. Se ele a visse naquele estado,
todas suas chances iriam por água abaixo.
*
Dona Iara estendeu a toalha rosa e felpuda para a neta se
enxugar. Depois de um banho de 45 minutos Clarissa se sentia mais limpa. Pelo
menos o fedor de azedo tinha dado lugar ao do sabonete floral da avó.
– Você não deve andar correndo, Clarinha. Senão fossem as
latas de lixo você poderia ter quebrado algum osso.
Clarissa também não contara a avó o motivo da queda e tratou
de desviar o assunto.
– Mariana foi bem legal em me oferecer ajuda. Porém, se eu
aceitasse, ela ficaria tão imunda quanto eu.
– A Mari é uma ótima pessoa. Um pouco estranha, é verdade,
mas eu gosto muito dela.
Depois de alguns segundos de silêncio, Clarissa perguntou:
– Por que Mariana é assim?
– Assim como?
– Estranha como você disse. Triste. Ela é uma mulher triste.
Dona Iara pensou um pouco antes de dizer:
– Acho que ela teve alguma desilusão na vida. Amorosa, por
assim dizer.
Clarissa se interessou.
– Sério? O que você sabe?
– Não sei nada. Mas é o que dizem. Eu a conheço faz uns dez
anos e ela sempre foi assim. Então eu presumo que se alguma coisa aconteceu na
vida dela já faz um bom tempo.
– Então ela é solteira?
– Sim – Dona Iara pegou uma segunda toalha e começou a
enxugar os cabelos da neta. – Ela mora sozinha em uma casa próxima daqui com os
gatos. Devem ser uns seis.
– Nossa, mas para que tanto gato?
– Ah, ela é uma mulher muito sozinha. São para fazer
companhia, coitada.
– E… bem, a senhora já a visitou alguma vez? – Clarissa
estava muito curiosa.
– Duas ou três vezes. A casa é toda ajeitadinha, sabe? Até
os bichanos são obedientes.
– Talvez ela tenha perdido o namorado para a melhor amiga e
nunca mais se recuperou depois disso.
Dona Iara riu.
– Teve uma época que a vida de Mariana me intrigava. Eu
também tinha muita vontade de saber por que ela é assim tão... tão misteriosa.
Quase não conta nada sobre a vida, do que gosta de fazer, nem sei se tem
família. Depois me acostumei com o jeitinho dela. Mariana é uma ótima pessoa.
– Imagino que sim... – Clarissa deixou a mente divagar
enquanto se secava. – Fico com pena dela. Ela parece ser tão triste, tão
solitária...
– Foi a vida que Mariana escolheu, Clarinha. Talvez ela seja
feliz assim.
Será? Clarissa tinha certeza que não.
... Continua...
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