Josué conseguiu
conciliar o sono somente por volta das quatro horas da manhã. Quando levantou,
às dez horas, Getúlio já tinha saído há um bom tempo. Com sono, ele vestiu a
primeira roupa que viu pela frente, com a intenção de comer alguma coisa e
voltar para a cama. Quando abriu a porta, levou um susto. Uma senhora, que ele
nunca havia visto até então, varria o corredor da casa.
— Olá, bom dia! ─ cumprimentou ela, de bom humor. —
Não nos conhecemos ainda. Sou a Vanda, faço a limpeza da casa do seu Getúlio
uma vez a cada quinze dias.
— Ah… prazer, Vanda. Eu sou o…
—… Josué. Seu primo me disse. Acho que ele se
esqueceu de avisar que eu viria hoje.
— Sim ─ o rapaz continuava embaraçado. — Mas tudo
está bem. Não quero atrapalhar você.
— Fique à vontade ─ replicou ela, varrendo o chão
com disposição.
Josué pegou um pedaço de pão e já estava voltando
para dormir quando se deparou com a porta do quarto do primo aberta. O rapaz
achou esquisito, pois Getúlio fazia questão de conservá-la sempre fechada.
Naquela manhã, no entanto, Vanda precisara entrar lá para limpar. Curioso,
Getúlio parou à porta. De imediato lhe chamou atenção um bonito baú de madeira
encostado no canto do quarto.
— Seu Getúlio gosta de tudo limpinho ─ comentou a
mulher em meio aos seus afazeres.
— Sim, ele é muito organizado ─ retrucou Josué sem
tirar os olhos do baú.
— O primo do senhor gosta que a casa fique um
brinco!
Josué não prestou atenção ao que a mulher dissera.
Intrigado, ele apontou para o baú:
— O que tem dentro?
Vanda olhou na direção que Josué apontava e
respondeu:
— É ali que seu Getúlio guarda as fotos da falecida.
— Da Mariana?
— Sim. É a relíquia dele. Um verdadeiro tesouro. Não
deixa ninguém mexer ali. Nem eu! É o próprio seu Getúlio que limpa o baú.
— Que interessante...
Naquele momento alguém bateu no portão. Vanda
colocou a vassoura de lado e anunciou:
— Deve ser o carteiro. O seu Getúlio está esperando
uma encomenda.
A mulher passou rápida por Josué. Mal ela sumiu das
suas vistas, Josué entrou no quarto e abriu o baú com o coração explodindo de
curiosidade. Sabia que era uma besteira, mas... não custava dar uma olhadinha.
Um pedaço de cetim cor-de-rosa cobria as fotos. Cuidadosamente,
mas com pressa, Josué afastou o tecido e pegou a primeira foto que lhe caiu nas
mãos. Uma moça muito bonita fazia pose em meio às flores da praça da cidade,
sorrindo abertamente para o fotógrafo. Josué sentiu o sangue sumir do rosto.
Era ela! Mariana era a moça da praça! Atarantado, Josué enterrou a mão entre as
tantas fotos que Getúlio guardava com carinho e pegou mais três. Em todas elas,
Mariana sorria para a câmera, um sorriso doce, feliz e apaixonado. Bem
diferente da alma angustiada que vagava agora pela cidade em busca sabe-se lá
Deus o quê.
Josué escutou Vanda se despedindo no portão e
prontamente fechou o baú. Dentro do bolso da calça escondeu uma das fotos de
Mariana. Não acreditava que ela pudesse ter morrido. Talvez fosse algum engano,
disse Josué para si mesmo indo para o quarto. O fato de ela
tê-lo levado até os portões do cemitério poderia ter sido uma brincadeira de
mau gosto. Pobre Getúlio. Mariana forjara sua própria morte para não casar com
ele.
Josué foi para o quarto, mas não conseguiu mais
dormir. Era impossível para ele desgrudar os olhos da foto que furtara. Mariana
era linda! Por isto Getúlio estava tão apaixonado. Decidiu que naquela noite
iria sozinho até a praça procurá-la. Sairia antes mesmo de Getúlio chegar para
não dar motivo para ele acompanhá-lo. E se Mariana não estivesse na praça,
então Josué iria até o cemitério.
A ansiedade tomou conta de Josué o dia inteiro. Vanda
preparou um almoço gostoso, mas ele mal tocou, alegando mal-estar. Fechou-se no
quarto com uma xícara de chá de hortelã, única coisa que conseguiu ingerir. Um
pouco antes das oito horas da noite, já estava pronto e perfumado, pronto para
ir atrás de Mariana. Minutos antes Getúlio ligara para avisar que ficaria um
pouco mais na farmácia. Ótimo, pensou ele, entre animado e nervoso.
A noite não estava tão bonita quanto as anteriores.
Nuvens pesadas no céu anunciavam chuva para breve. Josué franziu a testa. Uma
tempestade não estava nos seus planos. Enquanto caminhava apressado até a
praça, colocou a mão no bolso. A foto de Mariana continuava ali, como que para
encorajá-lo. Com passos firmes, focado no seu objetivo, Josué logo chegou à
praça. Devido ao tempo ruim, ela estava completamente deserta.
O homem suspirou, um pouco desanimado. Não, ele não
ficaria parado ali, esperando que Mariana aparecesse. “Vou até o cemitério”,
disse para si mesmo. Porém, não precisou dar dois passos. No outro extremo da
praça, distinguiu uma mulher caminhando tão suavemente que parecia deslizar.
Ela olhou atentamente para Josué, como se de repente percebesse sua presença.
Por alguns instantes, os olhos da jovem e do rapaz se encontraram. Então, ela
deu meia volta e desapareceu.
— Mariana! ─ gritou Josué, acenando para ela. — Por
favor, me espere.
A voz dele se perdeu na solidão da praça, quase
fazendo eco. Josué apressou os passos. Em seguida, pôs-se a correr. Não podia
deixar Mariana escapar-lhe daquele jeito. Tinha absoluta certeza que a moça
tinha algo a lhe dizer.
Menos de dez minutos depois, Josué chegou tenso e
exaurido nas proximidades do cemitério. Com as pernas fracas, sentou no cordão
da calçada para recuperar o fôlego. Sentia-se quase envergonhado de si mesmo.
Era jovem demais para ficar tão cansado daquele jeito. Precisava parar de beber
e comer porcaria. No dia seguinte começaria a fazer exercícios e…
Quando Josué olhou para frente, deparou-se com
Mariana às portas do cemitério. Era ela, não precisava sequer confirmar com a
foto que trazia no bolso das calças. O tecido leve do vestido esvoaçava ao seu
redor, tal qual os cabelos. Era uma visão lindíssima e Josué sentiu o ar lhe
faltar novamente tamanha sua emoção.
— Mariana...
Ele ficou em pé prontamente. Mariana o olhou e
depois entrou no cemitério. Josué caminhou até lá com as pernas ainda pesadas da corrida.
Por que Mariana fazia tanta questão de conversa com ele dentro daquele lugar
tão triste? Josué não conseguia entender. Mas aquilo não importava. O que mais
desejava naquele momento era ficar frente a frente com ela e descobrir porque
havia fugido de Getúlio e enganado a todos.
Os portões do cemitério estavam trancados com um
cadeado enorme. Josué sacudiu as grades freneticamente.
— Como ela conseguiu entrar? ─ perguntou Josué a si
mesmo.
Sem se dar por vencido, o rapaz reparou que os muros
que cercavam o lugar não eram tão altos. Tomando uma pedra como apoio, o rapaz
escalou o paredão com alguma dificuldade, suando muito e praticamente
estragando toda sua produção. Ligeiramente tonto, Josué caiu do outro lado,
estatelando-se no chão. Quando pôde ficar em pé, ainda agarrando-se no muro,
vislumbrou Mariana a poucos passos. Ela lhe sorriu, sentada em um túmulo. Josué
devolveu o sorriso, encantado. Meio que tropeçando nas pedras e raízes das
árvores, ele se aproximou de onde Mariana estava. Sentia-se cansado, mas
finalmente valera a pena. Chegara o momento que tanto esperara. Ficaria frente
a frente com ela e saberia de todos seus segredos.
Josué sentou ao lado de Mariana, respirando fundo.
Ao olhar para ela, levou um susto. A moça havia desaparecido. Atarantado, Josué
a chamou em voz baixa:
— Mariana? Mariana! Onde você está?
Um vento forte soprou, balançando os galhos das
árvores. Josué se encolheu dentro do casaco e, subitamente, sentiu medo. Estava
sozinho dentro do cemitério, cujos portões estavam trancados. E se não
conseguisse pular os muros? Estava tão fatigado... Não, Josué não queria passar
a noite naquele lugar.
— Mariana, volte, por favor!
Somente naquele momento Josué se deu conta que
estava sentado sobre um túmulo. Enojado, ele ficou em pé, tremendo. Uma foto na
lápide lhe chamou atenção.
Josué não precisou chegar muito perto para ver quem
estava sepultado ali. A foto de uma moça sorridente e bela lhe encarava
fixamente. Uma dor forte no peito fez com que Josué caísse de joelhos sobre a
terra.
— Mariana! Não, não...
Josué desabou no chão, com o peito parecendo pegar
fogo. Um dos seus últimos atos foi pegar a foto de Mariana que ainda estava no
seu bolso. Encarou-a longamente, sentindo uma dor terrível cortar sua
respiração. Josué se retorceu, mal acreditando que aquilo estava lhe
acontecendo. Alguém tinha que aparecer para lhe salvar.
Mariana surgiu ao seu lado, mais bela do que nunca.
Agachou-se ao lado dele e estendeu-lhe a mão. Josué segurou-a com força, tentou
falar alguma coisa, mas engasgou. Um raio riscou o céu no exato momento que
Josué respirou pela última vez.
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