Getúlio chegou meio bêbado um pouco depois das onze
horas da noite. Achou estranho não encontrar Josué, mas também não se importou.
Tomou um banho e foi para a cama onde teve um sono pesado e, felizmente, sem
nenhum pesadelo. O relógio despertou às 06h15min da manhã e o que sobrou da
bebedeira do dia anterior foi uma dolorida enxaqueca. Sem tempo para pensar
muita coisa, preparou um café preto bem forte como sua primeira refeição do
dia. Enquanto bebia, lembrou-se de Josué. Não o ouviu chegar de madrugada.
Lentamente, Getúlio se encaminhou até o quarto do primo e bateu suavemente na
porta:
— Josué? Fiz um café bem preto como você gosta.
Quer? ─Getúlio imaginou que o primo estivesse de ressaca também.
Somente o silêncio. Getúlio deu uma risadinha. A
noite havia sido muito boa para Josué! Curioso, abriu a porta. A cama
continuava arrumada, sem sinal nenhum que o outro tivesse retornado. Apesar de
o primo ser um homem feito, Getúlio voltou para a cozinha preocupado. Ora,
talvez ele tivesse preferido dormir na casa de alguma mulher como fizera outras
vezes. A diferença é que Josué sempre procurava avisar, ao contrário desta vez.
Getúlio se serviu de mais café e tentou se tranquilizar. Certamente estava tão
feliz que nem atinara de ligar para dizer que chegaria bem mais tarde.
Depois de tomar três xícaras de café e se sentir um
pouco mais disposto, Getúlio começou a se arrumar para enfrentar mais um dia na
farmácia. Lembrou-se da moça na praça e a imagem de Mariana veio a sua mente.
Getúlio sacudiu a cabeça freneticamente tentando afastá-la dos seus
pensamentos. Aquilo o perturbava demais. Se realmente o espírito de Mariana
estivesse vagando por aí, sinal que ela não encontrara a paz eterna. Getúlio
pensou em ir à igreja ao meio dia acender algumas velas em intenção à falecida.
Batidas fortes na porta da frente o tiraram dos seus
devaneios. Pensando ser Josué, Getúlio se apressou em abri-la. Ficou surpreso
ao se deparar com Benedito, o dono do bar onde costumava beber com o primo.
— Ué, cara! Que pressa é esta?
— Corre para o cemitério, Getúlio! ─ o homem segurou
o braço do amigo, puxando-o com força para fora de casa. — Seu primo Josué foi
encontrado lá.
Getúlio levou um susto. Mal teve tempo de pegar a
chave. Ainda meio descomposto, encaixou os pés no chinelo e foi acompanhado de
Benedito até o cemitério. Durante o trajeto, tentou arrancar alguma informação
do amigo, mas este parecia muito assustado. Cemitério! Getúlio já estava suando
frio. Que ressaca forte a do primo! Tanto lugar para ir, tinha que ser justo
naquele lugar maldito? Sombrio, Getúlio levantou a hipótese de que Josué havia
parado lá por causa da moça de branco.
Trêmulo, Getúlio chegou ao cemitério pensando
somente em levar o primo para casa e passar-lhe um bom sermão. Ao aproximar-se
distinguiu o delegado de polícia, o médico da cidade e o zelador do cemitério
em torno de um corpo no chão.
— Não sei como ele conseguiu entrar aqui, senhor
Getúlio ─ tentou se explicar o zelador, inconformado. — Eu fecho os portões às
seis horas da tarde!
As pernas de Getúlio se tornaram mais fracas ainda
quando o delegado o encarou, parecendo constrangido. Josué estava deitado no
piso duro, sem se mexer. Os homens abriram passagem para Getúlio chegar de vez
ao lado do primo.
Nas mãos dele, a foto roubada de Mariana.
— Ele… ele está morto? ─ balbuciou Getúlio ao ver a
expressão de dor estampada no rosto de Josué.
— Sim ─ confirmou o médico, segurando um lençol para
cobrir o defunto. — Provavelmente teve um ataque do coração. Desconhecemos é o
motivo de ele ter vindo aqui.
Mas Getúlio sabia. Antes que o corpo fosse coberto,
abaixou-se e resgatou a foto da esposa. Feito isto, deu as costas e foi embora,
caminhando pesadamente ao lado do Benedito. Mais uma tragédia na sua vida. A
desgraça era ainda maior por Josué ter escolhido morrer justo ao lado do túmulo
de Mariana. Getúlio não sabia se odiava ou não o primo por aquilo.
*
O enterro de Josué foi na cidade onde ele nasceu e
Getúlio achou melhor não comparecer. Mesmo triste, sentia-se traído pelo primo.
Josué, além de entrar no seu quarto sem permissão, roubara também a foto de
Mariana. Não havia desculpas. Pior de tudo era ter morrido praticamente ao lado
de onde o corpo da mulher estava enterrado. Bem, dizia Getúlio a si mesmo, pelo
menos o corpo de Mariana ele sabia onde estava. Já o seu espírito vagava sem
rumo. Ou talvez agora tivesse a companhia de Josué.
Ele não foi trabalhar por uns três dias, período em
que ficou em casa se lamuriando e enchendo a cara. Quem o tirou daquele estado
foi o pai de Mariana, dono da farmácia, preocupado com a sua situação.
Os dias então começaram a se arrastar para Getúlio.
A ausência de Josué lhe trouxe novamente o luto para seu coração. Pensou,
algumas vezes, em ir até a praça à noite tentar ver, ao menos de longe, a moça
de branco. Contudo, tinha receio encontrar Josué junto a ela e aquilo não teria
condições de suportar. Os amigos lhe chamavam para ir ao bar beber um pouco,
mas Getúlio preferia fazer isto em casa. Esvaziava duas garradas de cerveja
todas as noites para conseguir dormir. No dia seguinte se levantava de mau
humor para ir trabalhar. Os clientes cochichavam entre si que Getúlio não era
mais o mesmo de antes. Deixara de ser atencioso e gentil com as pessoas que lhe
procuravam. Ele parecia não se importar nem um pouco com isto.
Noite de sexta-feira. Nuvens pesadas de frio tomaram
conta da cidade e Getúlio resolveu fechar a farmácia mais cedo. Antes de ir
para casa, passou no bar para levar mais cerveja, juntando-se as que já
estocava em casa. Decidiu que passaria o final de semana bebendo para esquecer
a porcaria que era sua vida. Abriu a primeira garrafa na rua mesmo e quando entrou
em casa, já havia sorvido todo o seu conteúdo. Tomou um banho rápido, colocou o
pijama e sentou no sofá. Olhou ao redor e sentiu uma solidão terrível. Talvez
fosse sua sina viver sozinho o resto da vida. Perdera a primeira esposa durante
um parto complicado e o filho se fora junto. Depois conheceu a adorável Mariana
e a felicidade até que durou um bom tempo. Quando Mariana se foi, veio Josué
com sua alegria para tirá-lo do buraco sem fim que encontrava. Todos partiram.
Só restara ele, Getúlio, perdido na sua própria solidão, sem data para ter um
fim.
Getúlio não se deu conta quando dormiu. Acordou de
repente ao escutar uma voz sussurrada no seu ouvido:
— Meu amor...
Ele despertou totalmente, assustado. Olhou para os
lados tentando saber de onde vinha aquela voz. A sala estava escura e ele não se
lembrava de ter apagado as luzes. Um vulto na janela chamou sua atenção.
Getúlio virou a cabeça naquela direção, temendo o que poderia enxergar.
Mariana o encarava do lado de fora com uma expressão
de tristeza.
— Meu amor… ─ sussurrou ela, estendendo-lhe os dedos
brancos. — Não me deixe tão sozinha...
Um pouco travado pelo álcool, Getúlio deu um salto
do sofá e acabou se estatelando no chão. Outra vez olhou para a janela onde a
cortina se agitava suavemente.
— Eu vou buscá-la, querida ─ gemeu ele. Mas a moça
não estava mais ali. Desesperado, Getúlio gritou — Mariana! Mariana, volte!
Getúlio escancarou a porta de casa e se enroscou nos
próprios pés. Rolou três degraus, machucando-se na queda. Mesmo assim, levantou
o mais rápido que pôde e olhou para frente. Mariana, do outro lado da rua,
olhava para ele com seus olhos tristes.
— Fique onde está ─ implorou Getúlio mais para si
mesmo. A voz saiu entorpecida pela quantidade de álcool ingerida. — Já vou
buscar você. Não, não vá, por favor ─ a imagem de Mariana se desvaneceu aos
poucos até sumir completamente.
O homem ficou parado no mesmo lugar, respirando
fundo para tentar se acalmar. O vento frio cortava-lhe a respiração e ele nem
percebia. Quando tivesse a esposa novamente nos seus braços, todo o frio,
tristeza e dor se acabariam em definitivo.
Ele esperou mais um pouco, esperando Mariana voltar,
o que não ocorreu. Getúlio sugou todo o ar que podia, tentando criar coragem.
Precisava ir até o cemitério. Era lá que encontraria o amor da sua vida.
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