1
Primeiro o prefeito mandou
fechar as duas entradas da cidade. Depois o delegado ordenou que o contingente
de três policiais fizesse uma ronda todos os dias ao anoitecer para quem
estivesse na rua fosse devidamente posto dentro de casa. O motivo? O mocoronga vírus,
uma peste que provocava uma sucessão de espirros e uma diarreia incontrolável.
Logo o pavor tomou conta da
pequena Santa Luzia. As pessoas tinham medo de sair à rua. As missas foram
suspensas e o comércio local começou a atender com as grades fechadas, evitando
qualquer contato pessoal. Máscaras de proteção e luvas eram a nova moda entre
os habitantes apavorados.
O remédio para diarreia esgotou
rapidamente das duas farmácias no município. Ninguém queria ser pego
desprevenido. Ainda que não houvesse sido registrado nenhum caso na comunidade
e arredores, o medo de se cagar em público era maior que qualquer coisa.
Os namorados não se beijavam
mais. Ninguém mais compartilhava o chimarrão. Os cumprimentos afáveis e apertos
de mão deixaram de acontecer. Tudo era à distância. O pavor tomou conta daquele
pequeno lugar. Tinha gente que até medo de peidar sentia. A situação era
caótica.
E havia o Vanderlei, o bêbado de
estimação da cidade. Ele vivia numa casinha um pouco afastada do centro de
Santa Luzia com seus cachorros. Vander era um bêbado quieto e não se sabia se
ele estava a par do que estava ocorrendo. O fato é que o homem circulava,
despreocupado, pelas ruas da cidade com sua garrafa de cachaça, feliz na sua
bebedeira, sempre com um par de cachorro nos seus calcanhares. De fato, Vanderlei
era o cara mais sereno de Santa Luzia. Não estava nem aí para nada. Um vírus?
Deixa pra lá.
Mas teve uma vez que Vander
burlou o toque de recolher da polícia. Foi em uma noite em que ele estava mais
bêbado do que nunca. Aos berros, o homem deu uma volta ao redor do chafariz da
praça bebendo cachaça. As pessoas chegaram à janela e algumas pediram que ele
fosse para casa. Ninguém queria sair para acalmá-lo com medo do vírus e da
polícia (o delegado esbravejou que prenderia quem ousasse estar fora de casa
depois que o sol baixasse). Vanderlei ignorou a todos. Quando avistou um dos
policiais se aproximando juntamente com o delegado, Vanderlei tirou as calças e
defecou bem no meio da praça.
— Eu peguei o mocoronga vírus! –
berrou ele. — Estou pesteado!
E ria. Algumas janelas foram
batidas violentamente. O policial e o delegado, que vinham em passo firme,
pararam subitamente ao assistirem aquela cena. Não tanto pela nojeira, mas pelo
medo do infeliz estar infectado. O policial deu um cutucão no delegado e
comentou:
— Ele não está doente coisa
nenhuma. É só para afrontar mesmo.
Mas o delegado suava em
profusão.
— Eu só não mando prender este
vagabundo porque ele pode contaminar toda a delegacia. Vou falar com o prefeito
para mandar desinfetar a praça.
No outro dia quando os moradores
saíram para seus afazeres encontraram a praça cercada por um cordão de
isolamento. De Vander, nem sinal.
2
A Maricota saiu cedo de casa,
por volta das oito horas da manhã, para ir até o cemitério levar algumas rosas
para pôr no túmulo do finado. Não era por um vírus mixuruca que ela iria ficar
em casa confinada como algumas amigas estavam fazendo. Ela precisava sair,
respirar ar puro (ou não tão puro assim), cumprimentar as pessoas. Bem, as
pessoas não estavam saindo muito para a rua. O prefeito recomendara que era
para sair só em caso de necessidade. Bem, o finado estava de aniversário e ele
merecia flores. E lá foi Maricota agarrada no seu buquê de rosas. Não tinha
medo do mocoronga vírus, muito menos de ficar doente. O bicho não tinha nem
chegado perto de Santa Luzia ainda! Que gente medrosa!
Enquanto caminhava segurava de
si até o cemitério no ponto mais alto da cidade, Maricota pôde perceber os
olhares tortos que recebia dos vizinhos recolhidos nas suas casas e que estavam
na janela cuidando da vida alheia. Quase fez uma banana pra aquela gentinha. No
cemitério não ficou mais que meia hora. Rezou, deu uma chorada, conversou um
pouco com o finado e foi embora. Lembrou que precisava comprar pão e passou na
padaria do seu Joca. Havia em torno de cinco pessoas que se mantinham afastadas
uma das outras esperando do lado de fora para serem atendidas. Seu Joca, de
máscara, atendia pela grade, entregando os produtos por ali, dentro de uma
sacola pendurada na ponta de uma taquara. Maricota ficou por ali admirando a
bela praça (agora já limpa depois da cagança do Vanderlei), os passarinhos, o
céu azul. Ninguém conversava. Pareciam ter medo de abrir a boca e acabar engolindo
o mocoronga. A primavera era linda, Maricota pensou ao mesmo tempo que sentiu
vontade de espirrar. Maldita rinite, praguejou ela antes de ser sacudida por
uma sequência de uns dez espirros. Quando voltou ao normal se surpreendeu ao
reparar que os vizinhos estavam a metros de distância dela, todos a observando
com ares de espanto e terror. Paralisados. Seu Joca a encarava de olhos
arregalados. Aliás, com a máscara, a única coisa que aparecia no rosto do homem
eram os óculos de aros grossos. Todo ele era pânico. Maricota levou cinco
segundos para se dar conta do que acontecera.
— Gente... – ela teve vontade de
rir. — É só uma crise de rinite.
Uma mulher apontou um dedo
trêmulo e nervoso para ela, dizendo com uma voz cavernosa:
— Ela está com a coisa!
— Não, não estou, não – Maricota
ainda riu sem se dar conta da gravidade. — É rinite, eu tenho surtos sempre que
começa a primavera. Gente, nem me caguei ainda!
Só quem riu foi ela. Ninguém
mais. Seu Joca fechou a porta do estabelecimento com um estrondo e se refugiou
lá dentro. Do lado de fora alguém sacou o celular e ligou para a polícia. Quem
então arregalou os olhos foi Maricota. Oi? Polícia? Então iriam prendê-la? Ou
levá-la para algum tipo de confinamento?
Socorro.
Maricota deu meia volta e saiu
correndo do jeito que podia. Ela não tinha mais idade para correr, mas de
alguma forma conseguiu se afastar da cidade o bastante para escapar das garras
da polícia. No meio do caminho, numa estradinha de terra, suada e com as pernas
bambas, deu de cara com o Vanderlei.
— Vander! – berrou ela se
aproximando. Lembrou que o finado dava dinheiro para ele sempre que o bebum
pedia. — Me ajuda, por favor! A polícia quer me prender!
— Por quê? – naquele momento ele
não estava tão bêbado assim. — Você cagou na praça também?
— Não! – Maricota se horrorizou
com a pergunta de Vanderlei. — Eu só espirrei.
— Ah, minha filha – retrucou
Vanderlei balançando a cabeça de um lado para o outro. — Você já devia saber
que lá na cidade não se pode nem cagar e nem espirrar.
— Pois é, mas a rinite me atacou.
E chamaram a polícia.
— Olha – Vanderlei cruzou os
braços e olhou para ela. — O que você pode fazer é se esconder lá em casa.
— Na sua casa? – Maricota torceu
a cara. — Mas lá vai ter lugar para mim? Naquele muquifo?
— Quer ou não quer?
Não que tivesse medo de
Vanderlei. Ele sempre fora um pobre diabo inofensivo. Só não sabia o que
esperar de um local habitado por um bêbado.
— Tudo bem – ela decidiu
arriscar. Não tinha alternativa. Lembrou da sua prima, a Dalva. Ela morava há
cinquenta quilômetros de Santa Luzia e sempre haviam sido amigas. Era claro que
Dalvinha iria ajudá-la naquele momento crítico. — Eu vou aceitar sua
hospitalidade. Mas não será por muito tempo. Vou ligar para minha prima Dalva
vir me salvar.
— Só se ela chegar de
helicóptero – devolveu Vanderlei. — O prefeito mandou fechar as entradas,
esqueceu, minha filha?
3
Ainda com o coração aos saltos,
Maricota seguiu Vanderlei pela estradinha de terra, dobrou à direita e seguiu
por mais alguns metros. Havia mato por todos os lados e, no fundo do caminho, a
casinha do Vanderlei. Era de madeira e bem pintada. Quando chegaram frente à
casa, Vanderlei fez uma mesura e apontou para a porta.
— Pode entrar. A casa é sua.
— Muito obrigada –
desconfortável, Maricota empurrou a porta, ressabiada. Se surpreendeu. O local
era limpinho e bem arrumado. — Nossa, Vander. Você sabe cuidar bem da sua
casinha.
— Fique à vontade – disse ele
entrando e fechando a porta. — Pode sentar. – Ele indicou um sofá velho, feito
com uma colcha de retalhos. — Está com fome? Eu tenho comida na geladeira.
— Você tem geladeira?
— Claro. Onde você acha que eu
guardo o trago?
Maricota pegou o celular da
bolsa.
— Primeiro preciso falar com a
Dalva. Não pretendo passar minha noite aqui.
— Não se preocupe, eu tenho uma
cama extra – ele parou frente à Maricota. — Ei, eu posso ajudar você a fugir
daqui. Eu tenho um plano.
Maricota desligou o celular e o
encarou, interessada.
— Um plano para me salvar das
garras do louco do delegado? Me conte, por favor.
— Nós vamos de madrugada até sua
casa, você junta suas roupas e pede para sua prima a esperar do lado de fora da
cidade, antes das barricadas. Eu ajudo você a carregar suas coisas até lá.
Vanderlei acendeu um cigarro
fedido e arrematou:
— Nunca vou me esquecer do seu
Geraldo. Ele sempre financiou meu trago.
Maricota bateu palmas
subitamente animada com aquela perspectiva.
— Grande plano. Vou ligar para a
Dalva.
Ligação feita, Maricota e Vander
se sentaram frente a frente para traçar o plano. Ambos chegaram à conclusão que
não haveria como dar errado e, para comemorar, Maricota chegou a dividir uma
garrafa de cachaça com seu novo amigo. Resultado: os dois dormiram o resto do
dia e Vander acordou logo depois da meia noite, assustado.
— Acorda, mulher! Está na hora
de irmos até a cidade!
O lugar era escuro e Vanderlei
acionou sua lanterna. Com as pernas bambas, tensa, Maricota seguiu-o pelos
caminhos escondidos da área rural de Santa Luzia. Antes de chegar à cidade
recebeu uma mensagem da prima. Dalva já estava a postos na entrada da cidade
aguardando novas instruções.
Era uma hora da manhã quando os
dois chegaram ao centro da pequena Santa Luzia. Alguns postes de luz davam a
iluminação necessária ao local. Vanderlei puxou Maricota pela manga da blusa e
ambos se esgueiraram pelas sombras das ruas e andaram alguns pontos agachados
para se confundirem com a escuridão. Estava indo tudo bem até aquele momento.
Maricota enviou uma mensagem para Dalva para dizer que em breve se encontraria
com ela e, precavida, guardou o celular dentro da calcinha. A casa branca e com
um gracioso jardim na frente já era possível de ser avistada por sua dona que,
alvoroçada, cutucou Vanderlei:
— Olha, estamos perto. Vou pegar
o mínimo necessário e...
— Psh... – ralhou Vanderlei. —
Todo silêncio é ouro.
Ele mal havia pronunciado
aquelas palavras quando algo como uma teia cobriu o casal. De repente, Maricota
se viu envolvida por uma rede e pensou, em um primeiro momento, ser uma
brincadeira sem graça de Vanderlei. Porém, quando se virou para ele, se deu
conta que o parceiro de fuga estava enredado também. E furioso.
— Mas que merda é esta? –
perguntou ele em voz alta.
— Calem a boca vocês dois.
Uma voz vinda da escuridão fez
com que Vander e Maricota se voltassem, assustados, para a direita. Um dos
policiais segurava uma espingarda apontada diretamente para eles. Maricota
ficou mais apavorada. Nunca, na vida, estivera na mira de uma arma. Vander,
contudo, logo se recuperou do susto. Com as mãos na cintura olhou o policial e
bradou, furioso:
— Pode explicar o que é isto
aqui? Estamos sendo presos?
A voz aguda de Vander varou a
noite de Santa Luzia. No entanto, nenhum vizinho abriu a janela para conferir
que barraco era aquele. O policial sacudiu a arma frente aos dois em uma
distância segura. Com a voz ainda em tom baixo, o homem ordenou:
— Sim, por estarem contaminados
pelo mocoronga. Andem! Andem!
Maricota e Vanderlei não tiveram
outra alternativa a não ser seguirem pelo caminho indicado pelo policial.
Sempre na mira da espingarda, Maricota com as pernas trêmulas e Vanderlei,
resmungando sozinho, caminharam pelas ruas escuras de Santa Luzia e foram parar
atrás da delegacia. Nos fundos do terreno havia um pequeno galpão. O policial
destrancou uma porta e disse:
— É aqui que vocês vão ficar até
se livrarem da peste.
— Para começo de história, eu
não estou com a peste – informou Maricota. — Estou com rinite.
— E naquele dia eu estava com
dor de barriga – arrematou Vander com o dedo em riste – depois que o delegado
me deu um cachorro quente estragado para eu comer.
— Calem-se! – ainda distante o
policial fez um sinal com a espingarda. — Entrem aí.
Maricota na frente e Vander logo
após, entraram na cela úmida e escura. O policial veio por trás, arrancou a
rede e fechou o galpão. Em seguida se afastou apressado como se a peste pudesse
envolvê-lo com um abraço. Maricota, furiosa, bateu o pé no chão diversas vezes.
— O que este delegado tem na
cabeça? Como ele pode manter duas pessoas em cárcere privado sem ter feito
nenhum exame para saber se estamos com a peste?
— Você está com o celular ainda?
— Sim.
— Então avise sua prima. Conte o
que houve e descubra se ela pode dar um jeito de nos tirar desta enrascada.
Maricota pegou o celular de
dentro da calcinha e telefonou na mesma hora para Dalva:
— Dalva! Você não vai adivinhar
o que aconteceu...
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