segunda-feira, 6 de abril de 2020

MOCORONGA VÍRUS - Parte 1






1

Primeiro o prefeito mandou fechar as duas entradas da cidade. Depois o delegado ordenou que o contingente de três policiais fizesse uma ronda todos os dias ao anoitecer para quem estivesse na rua fosse devidamente posto dentro de casa. O motivo? O mocoronga vírus, uma peste que provocava uma sucessão de espirros e uma diarreia incontrolável.

Logo o pavor tomou conta da pequena Santa Luzia. As pessoas tinham medo de sair à rua. As missas foram suspensas e o comércio local começou a atender com as grades fechadas, evitando qualquer contato pessoal. Máscaras de proteção e luvas eram a nova moda entre os habitantes apavorados.

O remédio para diarreia esgotou rapidamente das duas farmácias no município. Ninguém queria ser pego desprevenido. Ainda que não houvesse sido registrado nenhum caso na comunidade e arredores, o medo de se cagar em público era maior que qualquer coisa.

Os namorados não se beijavam mais. Ninguém mais compartilhava o chimarrão. Os cumprimentos afáveis e apertos de mão deixaram de acontecer. Tudo era à distância. O pavor tomou conta daquele pequeno lugar. Tinha gente que até medo de peidar sentia. A situação era caótica.

E havia o Vanderlei, o bêbado de estimação da cidade. Ele vivia numa casinha um pouco afastada do centro de Santa Luzia com seus cachorros. Vander era um bêbado quieto e não se sabia se ele estava a par do que estava ocorrendo. O fato é que o homem circulava, despreocupado, pelas ruas da cidade com sua garrafa de cachaça, feliz na sua bebedeira, sempre com um par de cachorro nos seus calcanhares. De fato, Vanderlei era o cara mais sereno de Santa Luzia. Não estava nem aí para nada. Um vírus? Deixa pra lá.

Mas teve uma vez que Vander burlou o toque de recolher da polícia. Foi em uma noite em que ele estava mais bêbado do que nunca. Aos berros, o homem deu uma volta ao redor do chafariz da praça bebendo cachaça. As pessoas chegaram à janela e algumas pediram que ele fosse para casa. Ninguém queria sair para acalmá-lo com medo do vírus e da polícia (o delegado esbravejou que prenderia quem ousasse estar fora de casa depois que o sol baixasse). Vanderlei ignorou a todos. Quando avistou um dos policiais se aproximando juntamente com o delegado, Vanderlei tirou as calças e defecou bem no meio da praça.

 — Eu peguei o mocoronga vírus! – berrou ele. — Estou pesteado!

E ria. Algumas janelas foram batidas violentamente. O policial e o delegado, que vinham em passo firme, pararam subitamente ao assistirem aquela cena. Não tanto pela nojeira, mas pelo medo do infeliz estar infectado. O policial deu um cutucão no delegado e comentou:

— Ele não está doente coisa nenhuma. É só para afrontar mesmo.

Mas o delegado suava em profusão.

— Eu só não mando prender este vagabundo porque ele pode contaminar toda a delegacia. Vou falar com o prefeito para mandar desinfetar a praça.

No outro dia quando os moradores saíram para seus afazeres encontraram a praça cercada por um cordão de isolamento. De Vander, nem sinal.

2

A Maricota saiu cedo de casa, por volta das oito horas da manhã, para ir até o cemitério levar algumas rosas para pôr no túmulo do finado. Não era por um vírus mixuruca que ela iria ficar em casa confinada como algumas amigas estavam fazendo. Ela precisava sair, respirar ar puro (ou não tão puro assim), cumprimentar as pessoas. Bem, as pessoas não estavam saindo muito para a rua. O prefeito recomendara que era para sair só em caso de necessidade. Bem, o finado estava de aniversário e ele merecia flores. E lá foi Maricota agarrada no seu buquê de rosas. Não tinha medo do mocoronga vírus, muito menos de ficar doente. O bicho não tinha nem chegado perto de Santa Luzia ainda! Que gente medrosa!

Enquanto caminhava segurava de si até o cemitério no ponto mais alto da cidade, Maricota pôde perceber os olhares tortos que recebia dos vizinhos recolhidos nas suas casas e que estavam na janela cuidando da vida alheia. Quase fez uma banana pra aquela gentinha. No cemitério não ficou mais que meia hora. Rezou, deu uma chorada, conversou um pouco com o finado e foi embora. Lembrou que precisava comprar pão e passou na padaria do seu Joca. Havia em torno de cinco pessoas que se mantinham afastadas uma das outras esperando do lado de fora para serem atendidas. Seu Joca, de máscara, atendia pela grade, entregando os produtos por ali, dentro de uma sacola pendurada na ponta de uma taquara. Maricota ficou por ali admirando a bela praça (agora já limpa depois da cagança do Vanderlei), os passarinhos, o céu azul. Ninguém conversava. Pareciam ter medo de abrir a boca e acabar engolindo o mocoronga. A primavera era linda, Maricota pensou ao mesmo tempo que sentiu vontade de espirrar. Maldita rinite, praguejou ela antes de ser sacudida por uma sequência de uns dez espirros. Quando voltou ao normal se surpreendeu ao reparar que os vizinhos estavam a metros de distância dela, todos a observando com ares de espanto e terror. Paralisados. Seu Joca a encarava de olhos arregalados. Aliás, com a máscara, a única coisa que aparecia no rosto do homem eram os óculos de aros grossos. Todo ele era pânico. Maricota levou cinco segundos para se dar conta do que acontecera.

— Gente... – ela teve vontade de rir. — É só uma crise de rinite.    
        
Uma mulher apontou um dedo trêmulo e nervoso para ela, dizendo com uma voz cavernosa:

 — Ela está com a coisa!

— Não, não estou, não – Maricota ainda riu sem se dar conta da gravidade. — É rinite, eu tenho surtos sempre que começa a primavera. Gente, nem me caguei ainda!

Só quem riu foi ela. Ninguém mais. Seu Joca fechou a porta do estabelecimento com um estrondo e se refugiou lá dentro. Do lado de fora alguém sacou o celular e ligou para a polícia. Quem então arregalou os olhos foi Maricota. Oi? Polícia? Então iriam prendê-la? Ou levá-la para algum tipo de confinamento?

 Socorro.

Maricota deu meia volta e saiu correndo do jeito que podia. Ela não tinha mais idade para correr, mas de alguma forma conseguiu se afastar da cidade o bastante para escapar das garras da polícia. No meio do caminho, numa estradinha de terra, suada e com as pernas bambas, deu de cara com o Vanderlei.

 — Vander! – berrou ela se aproximando. Lembrou que o finado dava dinheiro para ele sempre que o bebum pedia. — Me ajuda, por favor! A polícia quer me prender!

 — Por quê? – naquele momento ele não estava tão bêbado assim. — Você cagou na praça também?

 — Não! – Maricota se horrorizou com a pergunta de Vanderlei. — Eu só espirrei.

 — Ah, minha filha – retrucou Vanderlei balançando a cabeça de um lado para o outro. — Você já devia saber que lá na cidade não se pode nem cagar e nem espirrar.

 — Pois é, mas a rinite me atacou. E chamaram a polícia.

 — Olha – Vanderlei cruzou os braços e olhou para ela. — O que você pode fazer é se esconder lá em casa.

— Na sua casa? – Maricota torceu a cara. — Mas lá vai ter lugar para mim? Naquele muquifo?

— Quer ou não quer?

Não que tivesse medo de Vanderlei. Ele sempre fora um pobre diabo inofensivo. Só não sabia o que esperar de um local habitado por um bêbado.

 — Tudo bem – ela decidiu arriscar. Não tinha alternativa. Lembrou da sua prima, a Dalva. Ela morava há cinquenta quilômetros de Santa Luzia e sempre haviam sido amigas. Era claro que Dalvinha iria ajudá-la naquele momento crítico. — Eu vou aceitar sua hospitalidade. Mas não será por muito tempo. Vou ligar para minha prima Dalva vir me salvar.

— Só se ela chegar de helicóptero – devolveu Vanderlei. — O prefeito mandou fechar as entradas, esqueceu, minha filha?

3

Ainda com o coração aos saltos, Maricota seguiu Vanderlei pela estradinha de terra, dobrou à direita e seguiu por mais alguns metros. Havia mato por todos os lados e, no fundo do caminho, a casinha do Vanderlei. Era de madeira e bem pintada. Quando chegaram frente à casa, Vanderlei fez uma mesura e apontou para a porta.

 — Pode entrar. A casa é sua.

— Muito obrigada – desconfortável, Maricota empurrou a porta, ressabiada. Se surpreendeu. O local era limpinho e bem arrumado. — Nossa, Vander. Você sabe cuidar bem da sua casinha.

 — Fique à vontade – disse ele entrando e fechando a porta. — Pode sentar. – Ele indicou um sofá velho, feito com uma colcha de retalhos. — Está com fome? Eu tenho comida na geladeira.

 — Você tem geladeira?

— Claro. Onde você acha que eu guardo o trago?

Maricota pegou o celular da bolsa.

— Primeiro preciso falar com a Dalva. Não pretendo passar minha noite aqui.

— Não se preocupe, eu tenho uma cama extra – ele parou frente à Maricota. — Ei, eu posso ajudar você a fugir daqui. Eu tenho um plano.

Maricota desligou o celular e o encarou, interessada.

— Um plano para me salvar das garras do louco do delegado? Me conte, por favor.

— Nós vamos de madrugada até sua casa, você junta suas roupas e pede para sua prima a esperar do lado de fora da cidade, antes das barricadas. Eu ajudo você a carregar suas coisas até lá.

Vanderlei acendeu um cigarro fedido e arrematou:

— Nunca vou me esquecer do seu Geraldo. Ele sempre financiou meu trago.

Maricota bateu palmas subitamente animada com aquela perspectiva.

— Grande plano. Vou ligar para a Dalva.

Ligação feita, Maricota e Vander se sentaram frente a frente para traçar o plano. Ambos chegaram à conclusão que não haveria como dar errado e, para comemorar, Maricota chegou a dividir uma garrafa de cachaça com seu novo amigo. Resultado: os dois dormiram o resto do dia e Vander acordou logo depois da meia noite, assustado.

— Acorda, mulher! Está na hora de irmos até a cidade!

O lugar era escuro e Vanderlei acionou sua lanterna. Com as pernas bambas, tensa, Maricota seguiu-o pelos caminhos escondidos da área rural de Santa Luzia. Antes de chegar à cidade recebeu uma mensagem da prima. Dalva já estava a postos na entrada da cidade aguardando novas instruções.

Era uma hora da manhã quando os dois chegaram ao centro da pequena Santa Luzia. Alguns postes de luz davam a iluminação necessária ao local. Vanderlei puxou Maricota pela manga da blusa e ambos se esgueiraram pelas sombras das ruas e andaram alguns pontos agachados para se confundirem com a escuridão. Estava indo tudo bem até aquele momento. Maricota enviou uma mensagem para Dalva para dizer que em breve se encontraria com ela e, precavida, guardou o celular dentro da calcinha. A casa branca e com um gracioso jardim na frente já era possível de ser avistada por sua dona que, alvoroçada, cutucou Vanderlei:

— Olha, estamos perto. Vou pegar o mínimo necessário e...

— Psh... – ralhou Vanderlei. — Todo silêncio é ouro.

Ele mal havia pronunciado aquelas palavras quando algo como uma teia cobriu o casal. De repente, Maricota se viu envolvida por uma rede e pensou, em um primeiro momento, ser uma brincadeira sem graça de Vanderlei. Porém, quando se virou para ele, se deu conta que o parceiro de fuga estava enredado também. E furioso.

— Mas que merda é esta? – perguntou ele em voz alta.

— Calem a boca vocês dois.

Uma voz vinda da escuridão fez com que Vander e Maricota se voltassem, assustados, para a direita. Um dos policiais segurava uma espingarda apontada diretamente para eles. Maricota ficou mais apavorada. Nunca, na vida, estivera na mira de uma arma. Vander, contudo, logo se recuperou do susto. Com as mãos na cintura olhou o policial e bradou, furioso:

— Pode explicar o que é isto aqui? Estamos sendo presos?

A voz aguda de Vander varou a noite de Santa Luzia. No entanto, nenhum vizinho abriu a janela para conferir que barraco era aquele. O policial sacudiu a arma frente aos dois em uma distância segura. Com a voz ainda em tom baixo, o homem ordenou:

— Sim, por estarem contaminados pelo mocoronga. Andem! Andem!

Maricota e Vanderlei não tiveram outra alternativa a não ser seguirem pelo caminho indicado pelo policial. Sempre na mira da espingarda, Maricota com as pernas trêmulas e Vanderlei, resmungando sozinho, caminharam pelas ruas escuras de Santa Luzia e foram parar atrás da delegacia. Nos fundos do terreno havia um pequeno galpão. O policial destrancou uma porta e disse:

— É aqui que vocês vão ficar até se livrarem da peste.

— Para começo de história, eu não estou com a peste – informou Maricota. — Estou com rinite.

— E naquele dia eu estava com dor de barriga – arrematou Vander com o dedo em riste – depois que o delegado me deu um cachorro quente estragado para eu comer.

— Calem-se! – ainda distante o policial fez um sinal com a espingarda. — Entrem aí.

Maricota na frente e Vander logo após, entraram na cela úmida e escura. O policial veio por trás, arrancou a rede e fechou o galpão. Em seguida se afastou apressado como se a peste pudesse envolvê-lo com um abraço. Maricota, furiosa, bateu o pé no chão diversas vezes.

 O que este delegado tem na cabeça? Como ele pode manter duas pessoas em cárcere privado sem ter feito nenhum exame para saber se estamos com a peste?

— Você está com o celular ainda?

— Sim.

— Então avise sua prima. Conte o que houve e descubra se ela pode dar um jeito de nos tirar desta enrascada.

Maricota pegou o celular de dentro da calcinha e telefonou na mesma hora para Dalva:

— Dalva! Você não vai adivinhar o que aconteceu...

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