domingo, 10 de abril de 2016

A NOIVA MORTA - Final


Uma forte tempestade começou a se armar, mas a ameaça das nuvens grossas não abalaram a vontade de Getúlio em ir ao encontro de Mariana. Estonteado e com a visão um pouco turva, ele reuniu suas forças para caminhar até o cemitério. Não havia ninguém na rua. Todos estavam recolhidos em suas casas esperando a chuva cair. Um pouco antes de chegar à praça, a tempestade desabou com força. O homem tremeu. Estava com pouca roupa e ela quase não lhe esquentava contra o frio. Ainda faltava um bom pedaço para chegar ao seu destino e uma dúvida se instalou na sua mente. Teria condições de vencer o trajeto, bêbado e entorpecido pelo frio?

Mesmo assim ele foi em frente. Olhou para os lados procurando Mariana. Talvez ela estivesse por ali. Não foi naquele lugar que Josué a vira pela primeira vez ?Mas não havia nenhum sinal dela. As costas começaram a doer e Getúlio espirrou. Tinha os pulmões fracos. Não podia se dar ao luxo em se expor daquela forma ao frio. Um trovão forte o assustou e Getúlio, na sua bebedeira, quase perdeu o equilíbrio. Um vulto branco surgiu do outro lado da praça.

— Mariana… ─ gemeu ele, emocionado.

Getúlio deu mais dois passos e caiu de joelhos no piso molhado. Além das costas, o peito começou a doer também. Sentindo-se doente, ele se arrastou até o gramado da praça onde permaneceu deitado, respirando com dificuldade. As pernas amoleceram e ele finalmente se deu conta que não teria condições nenhuma de ir até o cemitério encontrar Mariana, ou seja lá onde ela estivesse. Talvez estivesse ele próprio morrendo.

Resignado, Getúlio permaneceu de olhos fechados. Nunca imaginou que iria morrer daquele jeito, abandonado na chuva, em plena praça da cidade. No dia seguinte, quando o sol nascesse e a cidade acordasse, alguém encontraria seu corpo duro e frio. As pessoas lamentariam sua má sorte e a vida sem alegrias, seguindo suas vidas. As lágrimas de Getúlio misturaram-se com a da chuva.

Um movimento ao seu lado fez com que ele abrisse os olhos, devagar. Logo depois sentiu uma mão quente encostar em sua testa. Um doce perfume o envolveu. Ele sabia de quem era.

— Mariana, meu amor... Você voltou.
— Fique quietinho ─ retrucou uma voz sussurrada. — Vou tirar você daqui.

Getúlio, apesar de todo o seu intenso mal-estar, sentiu uma alegria infinita. Mariana, a mulher da sua vida, viera do mundo dos espíritos para lhe salvar. Ou levá-lo junto com ela. A partir dali ele não viu mais nada. Relaxou tão profundamente que o cansaço, as emoções e um sono pesado o levaram para um mundo sem sonhos, onde ninguém poderia lhe alcançar.

*

Getúlio acordou em um lugar que parecia ser um hospital. Ao seu lado, havia mais duas camas ocupadas por pessoas que dormiam profundamente. Do lado esquerdo, uma porta e ao longe ele podia escutar murmúrio de vozes. Por alguns instantes, Getúlio se perguntou se havia morrido. Será? Então por que Mariana não viera ainda lhe amparar? Porém, quando tossiu e sentiu o peito doer se deu conta que, infelizmente, estava vivo. E bem vivo. Pelo menos todos os desconfortos físicos que sentira naquela noite terrível em que tentara ir atrás da noiva haviam desaparecido quase pela metade. Mas como fora parar lá?

Aos poucos sua memória foi lhe trazendo algumas lembranças. Estremeceu ao relembrar a sensação do corpo molhado pela forte chuva e a dor que lhe varava o corpo. Lembrou também que alguém surgira do nada e certamente havia sido esta pessoa que lhe ajudara. Era Mariana, ele tinha certeza. Então ela não morrera? Ou ele próprio estava morto? Sua cabeça doeu com tanta confusão.

Um toque no seu braço fez com que Getúlio abrisse os olhos de repente. Havia cochilado e não se dera conta. Ao seu lado, uma mulher vestida de branco o encarava firmemente.

— Bom dia, Getúlio. Finalmente você acordou.

Ele piscou algumas vezes. Nunca tinha visto aquela pessoa na sua vida.

— Onde estou? Quem é você?
— Sou a enfermeira-chefe do hospital Santa Fátima. Encontrei você delirando na praça debaixo daquela tempestade horrorosa.

Então não tinha sido Mariana? Porém, Getúlio não ficou triste em descobrir aquilo.

— Há quanto tempo estou aqui?
— Há três dias. Meu nome é Soraia. Trabalho aqui há dois meses.

Um pouco embaraçado, Getúlio respondeu:

— Deve ser por isto que não havíamos nos conhecido ainda.

Ela sorriu levemente.

— Como você se sente?
— Meu peito dói um pouco ─ queixou-se ele.  — Mas estou bem melhor que… quando você me encontrou ─ Getúlio fez uma pausa. — Muito obrigado por me salvar.

Soraia sorriu levemente.

— Você me deu um susto e tanto. A chuva me pegou logo que saí do mercadinho. Confesso que quando lhe vi deitado no chão, acreditei que estivesse morto. Sorte sua que cheguei a tempo de providenciar socorro.

Getúlio se sentiu envergonhado. Imaginou a trabalheira que havia dado naquela noite inóspita por  causa da sua loucura e bebedeira.

— Devo meus agradecimentos e minhas desculpas também ─ murmurou ele, em voz baixa.
— Nem pense nisto ─ Soraia tinha um sorriso muito bonito. Suas feições eram suaves. — O importante é que você está bem agora. Receio lhe dizer, no entanto, que você terá que ficar mais alguns dias conosco no hospital. Você não está suficientemente forte para se cuidar sozinho.

Aquilo não pareceu tão ruim para ele. Soraia perguntou:

— Fiquei sabendo que você mora sozinho na cidade e seus parentes vivem longe. Gostaria de avisar alguém?
— Não, por favor ─ retrucou Getúlio. Seus pais já eram velhinhos e sofrido muito com as desventuras da vida do filho mais velho. Era melhor poupá-los. — Vou ficar bem, com certeza.
— Está bem, você quem sabe. Vou pedir para lhe trazerem uma sopa bem quentinha. Só comidas leves por enquanto, está bem?

Ao dizer isto, Soraia saiu do quarto. A sopa veio em seguida e Getúlio a saboreou lentamente. Não conseguiu mais tirar Soraia da cabeça.

*

Soraia costumava passar uma ou duas vezes por dia para ver como estava Getúlio. Ela mesma media sua pressão, auscultava o coração, verificava se tinha febre. Sempre lhe deixava uma palavra doce ou de esperança para ele, enchendo um pouco mais de alegria o coração solitário de Getúlio. Aquela rotina durou uma semana. Certo dia, em uma manhã, o médico que tratava dele apareceu no quarto e lhe deu alta. Getúlio ficou surpreso. Alta? Claro, era maravilhoso estar curado e sair do hospital. Só não esperava que fosse tão de repente. Enquanto se arrumava, Getúlio esperou a visita de Soraia. Um pouco antes de ir embora, não se conteve e perguntou por ela na recepção. Foi informado que ela tivera que fazer uma viagem inesperada e voltaria em dois dias.

Sentindo-se desamparado, Getúlio voltou para casa, acompanhado do ex-sogro, pai de Mariana. Quando chegou em casa, a mãe de Mariana havia deixado tudo arrumadinho para que Getúlio, ainda um pouco fraco, não tivesse que fazer força para nada. O casal foi embora, prometendo voltar mais tarde para ver como estavam as coisas. Então o homem sentou no sofá, ligou a TV e não assistiu programa nenhum. Sentia falta de Soraia. Não sabia nada sobre ela, se era casada, tinha filhos ou onde morava. Ela lhe dera atenção e cuidado quando mais ele precisara. Salvara sua vida também. Gostaria de vê-la mais vezes, porém não sabia como lhe dizer isto. Soraia havia sido profissional aquele tempo todo, exercendo com esmero sua profissão. Tímido, Getúlio não queria se precipitar. Estava frágil fisicamente e emocionalmente para levar uma negativa. Não via a hora de voltar à farmácia e se envolver completamente com suas funções. Talvez assim conseguisse tirar Soraia da cabeça.

O dia passou lentamente para Getúlio. Almoçou sem muita vontade e se deitou para cochilar. Tentou ler um livro, mas pegou no sono antes. Acordou perto das quatro horas da tarde e foi regar o jardim. As pequenas atividades em casa aliviaram um pouco a tristeza que sentia no coração. À noite, um pouco antes de começar a jantar, o telefone tocou. Devia ser um dos amigos querendo saber como ele estava. Já havia recebido várias ligações naquele dia, abrandando um pouco a solidão. Em breve, quando estivesse menos cansado, poderia receber visitas. Quem sabe até fazer um churrasco para suas amizades.

— Alô?
— Boa noite, Getúlio!

A voz cristalina de Soraia amoleceu as pernas de Getúlio. Ele precisou puxar um banquinho para sentar.

— Ei, Getúlio? Você está aí? ─ perguntou Soraia, com a voz preocupada.
— Sim, estou ─ respondeu ele, disfarçando que estava ofegante. — Puxa, que surpresa.
— Não pude estar presente por ocasião da sua alta ─ explicou ela. — Precisei fazer uma viagem repentina. Como você está?
— Ah, bem. Quer dizer, quase bem. Um pouco cansado.
— Não se esforce e nem volte a trabalhar ainda. Você precisa de repouso. Está fazendo isto?

Getúlio ficou faceiro com aquela preocupação toda.

— Mais ou menos.
— Pois lhe recomendo que faça repouso. É importante para sua completa recuperação.
— Estou fazendo o possível ─ ele respirou fundo e disse — Soraia, mais uma vez obrigado por tudo.
— Não precisa agradecer. Fico feliz que está bem.
— Você… você volta quando?
— Depois de amanhã. Preciso resolver coisas que ficaram pendentes antes de eu me mudar para aí.
— Isto é bom. Eu… que tal combinarmos de jantar? Meu ex-sogro me disse que abriu um restaurante novo na cidade.
— Oh, eu adoraria. Ligo para você quando voltar.

Getúlio exultou com aquela possibilidade.

— A propósito... Como você descobriu o número do meu telefone?
— Ah, Getúlio... Quando eu quero uma coisa, eu luto até conseguir. Até a volta!

Soraia encerrou a ligação e Getúlio se pegou sorrindo. De repente o mundo lhe pareceu um lugar melhor de se viver.


2 comentários: