Por precaução,
Lucinda pediu para o motorista do carro parar uma quadra antes. Depois, mal o veículo
se afastou, encaminhou-se a passos lentos até a sede da empresa. Somente então
se deu conta do tamanho da sua ousadia. Henrique Malta era o dono todo poderoso
daquele lugar. Ele certamente teria coisa mais importante para fazer a receber
uma total desconhecida com uma ideia maluca. Lucinda tinha a clara impressão
que não passaria sequer da recepção.
Entrar no prédio
não foi difícil. Lucinda nunca havia estado em um lugar tão chique. Uma
recepcionista bem arrumada a encarava detrás de um balcão. Foi para lá que
Lucinda se dirigiu lembrando que não tinha ensaiado nada para dizer.
— Bom dia –
cumprimentou a recepcionista, formalmente. — Em que posso ajudá-la?
— Preciso falar
com o Doutor Henrique Malta – a voz de Lucinda era praticamente um sussurro.
— Tem hora
marcada?
Meu Deus. Não
havia pensado naquilo. Com o coração acelerado, ciente de que da recepção não
passaria, Lucinda disse:
— Não.
A moça alcançou
para Lucinda um crachá escrito “visitante” e indicou:
— Pegue o
elevador. 4º andar.
— Obrigada – respondeu
Lucinda, afastando-se rapidamente antes que alguém interrompesse seu trajeto.
Ela entrou no
elevador e quando informou ao ascensorista o andar que pretendia ir, esperou da
parte dele uma reação. Nada.
O elevador
chegou ao andar da presidência e Lucinda se viu subitamente em um local
sofisticado, muito diferente do seu mundinho simples. Ela percorreu um pequeno
trajeto até uma porta envidraçada. Uma mulher estava atrás de uma mesa grande
com muitos papéis, computador e agenda. Ela estava ao telefone quando Lucinda
empurrou a porta devagar. Com passos miúdos, a jovem se postou frente à mesa e
aguardou, tensa, que a secretária particular de Henrique Malta pudesse lhe
atender. Talvez ela já soubesse que uma moça esquisita queria falar com o todo
poderoso.
— Bom dia. Você
veio aqui falar com o Doutor Henrique.
Não era uma
pergunta. Lucinda se sentiu intimidada, embora a mulher não estivesse sendo
grosseira ou mal educada.
— Sim senhora.
— Qual o
assunto? Você não marcou hora.
Lucinda
confessou:
— Foi tudo muito
repentino. E eu não sabia que deveria agendar.
— Bem, mas sobre
qual é o assunto? Emprego?
— Não. Eu… é
particular.
A secretária
suspirou.
— Moça… Seu nome
qual é?
— Lucinda – a
voz saiu rouca.
— Doutor
Henrique é muito ocupado. Às vezes as pessoas o procuram para tratar de
assuntos que poderiam muito bem ser resolvidos por mim.
— É sobre Álvaro
Malta – despejou Lucinda antes que a coragem acabasse. — E também sobre a morte
de Julieta, a empregada da mansão.
A fisionomia da
mulher se alterou completamente.
— Um instante,
por gentileza.
A mulher se
levantou e entrou no Gabinete. Menos de um minuto depois ela retornou.
— Senhora
Lucinda, por gentileza.
Lucinda chegou a
levar um susto. Já não tinha esperança alguma que pudesse ser recebida por
Henrique Malta. A secretária a aguardava segurando a porta do Gabinete para que
Lucinda passasse. Tímida e preocupada com o que iria enfrentar, a jovem entrou
na grande sala clara e de móveis sóbrios. Ao fundo, um homem moreno e muito
parecido fisionomicamente com Álvaro a encarava com alguma curiosidade.
Imediatamente,
depois de se deparar com tanta sofisticação, Lucinda se arrependeu de não ter
colocado uma roupa melhor. Receou, além de tudo, parecer simples demais ante a
riqueza do lugar e do homem sentado a sua frente.
— Bom dia –
cumprimentou ele. A voz era firme e demonstrava não ter muito tempo a perder.
Mesmo assim Henrique Malta parecia interessado no que ela tinha a dizer. —
Sente-se, por favor.
Lucinda sentou
agarrando-se a bolsa. Não sabia por onde começar. Deveria ter ensaiado alguma
coisa antes.
— Bom dia – a
voz dela saiu fraquinha. Péssimo para quem tinha tanta coisa importante.
Ele se inclinou
para frente e encarou Lucinda.
— Minha
secretária me disse que você quer falar comigo sobre meu irmão e sobre a moça
chamada Julieta que trabalha, ou melhor, trabalhava na mansão.
— Isto mesmo –
Lucinda respirou fundo. — Eu… eu acho que ela foi morta.
— Como? –
Henrique arqueou uma das sobrancelhas.
— Eu estive na
mansão ontem.
Ela não podia
parar para pensar. Se isto acontecesse, daria meia volta e sairia correndo
dali.
— Você esteve na
mansão? – Henrique mostrou seu estranhamento. — Quem você conhece por lá?
— Na verdade,
ninguém. Mas eu fui levada à força por João.
Henrique passou
a se interessar mais pela história de Lucinda. Desde que o irmão morrera, só
havia retornado uma vez na mansão para uma visita de condolências à cunhada.
Nunca haviam se dado bem. Henrique considerara um erro aquele casamento e
Álvaro lhe confidenciara dias antes de morrer que estava vivendo momentos
difíceis com Marília.
— João, o
capanga da minha cunhada. Por que ele fez isto?
— Fui vista duas
vezes orando na sepultura do seu irmão, Doutor Henrique. Eu estava no velório e
me surpreendi com a juventude dele. Fiquei impressionada, chocada. E voltei
algumas vezes no túmulo do senhor Álvaro. João contou para Dona Marília e acho
que ela não gostou.
— Ele tratou mal
você?
— Sim – Lucinda
ainda se sentia envergonhada. — Ele me colocou dentro de um carro ontem à tarde
e fui levada até a mansão. Lá Dona Marília me acusou de ser amante do falecido.
Lucinda esperou
que Henrique falasse alguma coisa, mas ele permaneceu calado. Ela respirou
fundo e prosseguiu:
— Óbvio que eu
neguei. Só conheci o senhor Álvaro dentro de um caixão. Quando nossa conversa
acabou, ela mandou Julieta me levar até os portões. Foi quando Julieta me fez
algumas revelações.
— Que
revelações? – Henrique estava muito sério.
— Ela acusou
Dona Marília de ter envenenado o marido. Na véspera da morte Julieta deu falta
de um frasco de veneno. No outro dia seu Álvaro caiu morto. Nenhum dos
empregados acreditou. Todos desconfiam que Dona Marília esteja de caso com o
cavalariço.
A fisionomia de
Henrique pouco se alterou. Lucinda esperava uma reação diferente. Algum tipo de
reação pelo menos.
— Percebi que
alguém estava nos observando pela janela do primeiro andar da mansão enquanto
ela me contava tudo no jardim. Ela me pediu ajuda. Disse para que eu viesse até
aqui contar tudo para o senhor. Foi o que eu fiz.
Henrique ficou
em silêncio como se estivesse analisando tudo o que Lucinda dissera.
Sentindo-se desconfortável, ela emendou:
— O senhor
Álvaro tem aparecido para mim também. O espírito, eu quero dizer. Ele pede
ajuda, está muito angustiado.
Ela esperou que
Henrique Malta fizesse troça dela por revelar aquilo. Imagine, o fantasma do
irmão vagando por aí e conversando com desconhecidos. Porém, ele ficou calado,
ensimesmado nos seus pensamentos. Depois de algum tempo onde Lucinda não sabia
se ia embora ou continuava sentada, finalmente escutou a voz dele.
— Obrigado por
me contar isto tudo, Lucinda. Agora volte para casa. Fique um tempo sem sair. É
bom que você não seja vista. Se puder, faça uma viagem.
Lucinda ficou
assustada. Como assim? Viagem? Então estava correndo perigo? Ela levantou e
estendeu a mão gelada para Henrique.
— Obrigada por
me ouvir, Doutor Henrique.
Ela deu meia
volta e saiu. Despediu-se da secretária, ansiosa por sair de lá e ir para casa.
Lembrou da pedra que estilhaçara a vidraça da sala. Os moradores da mansão não
estavam de brincadeira. Preocupada, Lucinda procurou um táxi para levá-la de
volta. Caminhou um trecho da avenida olhando para os lados a procura de um. Se
quisesse podia voltar à pé. Seria uma caminhada de uma hora, mais ou menos, o
suficiente para espairecer. Mas sabendo o perigo que a rondava, não podia se
dar a este luxo.
Depois de cinco
minutos Lucinda achou melhor procurar uma parada de ônibus. Talvez tivesse mais
sorte, quando passava algum táxi este já vinha ocupado. Sabia que na rua
detrás, não tão movimentada, havia um ponto. Desejou não ficar tanto esperando
um ônibus e que mais pessoas estivessem na parada com ela. Se sentia ansiosa
para chegar em casa e começou a providenciar uma boa desculpa para não sair por
alguns dias. Nunca imaginou que na sua cidade tão calma e de pessoas tão
pacíficas, pudesse realmente correr risco de vida.
Lucinda se
posicionou na parada de ônibus. Ela estava deserta àquela hora. Aquilo deixou a
moça apreensiva. A rua era calma, com simpáticas casinhas. Um ou outro cachorro
passeava por ali. Por onde olhasse, não havia vivalma por perto. O coração de
Lucinda acelerou. Quando passou a considerar a hipótese de sair dali o quanto
antes, um carro negro parou bem a sua frente.